Foto: Reynaldo Salgado

O que restou do antigo Mercado de Peixes, em Santos, inaugurado em 1982, deve ser utilizado como “registro de um processo de luta pela preservação da arquitetura moderna e de como uma intervenção no patrimônio não deve ser feita”.

A avaliação é de Daniela Quintas, arquiteta e urbanista, filha do autor do projeto do antigo Mercado de Peixes, o arquiteto Antônio Carlos Quintas. O local foi considerado, à época, um dos empreendimentos mais importantes da arquitetura modernista.

“É como uma cartilha ao revés para estudantes e arquitetos”, resume Daniela, que se formou na tradicional Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos (Faus) e mora em Londres, Inglaterra, há 12 anos.

O novo Mercado de Peixes de Santos, inaugurado em julho de 2020, foi responsável pela demolição quase completa do imóvel antigo. A obra integrou o Programa Nova Ponta da Praia.

“O novo edifício é muito pouco inspirador arquitetonicamente. É um edifício que não dialoga com o seu entorno e não cria relações com a cidade. Fechado para si. Até as garças, que antes tanto embelezavam o antigo Mercado, agora ficam do lado de fora, barradas no baile literalmente. Acho o projeto com um olhar muito insensível”, afirma Daniela.

O antigo Mercado de Peixes – Foto: Carlos Pimentel Mendes/Novo Milênio

Na opinião da arquiteta, o projeto do novo Centro de Convenções tem a mesma característica do novo Mercado, em uma escala ainda maior.

“Não estabelece nenhuma relação paisagística com o entorno, com o mar, com as montanhas, com a escala e horizontalidade dos edifícios vizinhos, o que o antigo Mercado respeitava e integrava-se tão bem. Relação paisagística adequada com o entorno é um dos conceitos mais básicos de projeto e que aqui não existe. Bastante lamentável”, destaca.

“A insensibilidade dos autores e gestores do projeto e a incapacidade de entenderem que se pode e deve integrar novo e antigo resultaram na destruição de metade do antigo Mercado. Uma mutilação arquitetônica inaceitável de um patrimônio arquitetônico e cultural da cidade”, acrescenta.

Com o objetivo de tentar manter o antigo edifício, Daniela chegou a ingressar no Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (Condepasa) com um pedido de abertura do processo de tombamento do local.

“Tive a força de um grupo grande de arquitetos de Santos e São Paulo e com moção de apoio do Conselho Municipal de Cultura de Santos (Concult). Tivemos três votos de profissionais da área de arquitetura e patrimônio favoráveis à manutenção do imóvel. Os votos contra foram praticamente todos de representantes do governo municipal, que, dessa forma, claramente mostrou seu desinteresse em manter o edifício”, relata.

O objetivo principal do grupo era evitar a demolição do antigo Mercado, dando ao imóvel um uso compatível.

“Quando olho o que restou, o vazio que ficou no local, na praça árida e sem vida, sinto uma tristeza muito grande. Pela perda de referência cultural e arquitetônica, pela perda daquele espaço que era tão vivo, e o foi por quase 40 anos. Sinto muito pessoalmente também, pois foi como perder meu pai mais uma vez anos depois. Ele vivia ainda para mim naquele espaço”, destaca Daniela.

Ela menciona o que sobrou da antiga obra. “Restaram sete das 18 abóbodas de berço, sendo que perdemos as centrais, as mais longas e que eram chave na composição arquitetônica elaborada pelo arquiteto Quintas. Perdemos, ainda, o painel gráfico dos peixes. Esses foram agora replicados no mosaico português do chão e, também, dentro do novo Mercado. Uma intervenção bastante simplista. Todas as paredes do antigo Mercado foram demolidas, ficando apenas as abóbodas sobre pilares. Originalmente, as abóbodas feitas de tijolos cerâmicos e vigotas de concreto tinham essa estrutura aparente, o que tampouco foi recuperada no projeto de intervenção”, lamenta a arquiteta.

Para Daniela, não foi levada em conta a relevância da preservação da memória e do patrimônio. “Como escreveu o arquiteto e professor Carlos Lemos, ‘o importante é preservar, já que o que não é patrimônio histórico desaparece com o tempo’. A partir do patrimônio, temos identidade e nos tornamos únicos. Sem isso, não temos referência e somos vazios. Como vazia ficou a intervenção ao antigo Mercado”.

Daniela Quintas: “Sinto muito pessoalmente também, pois foi como perder meu pai mais uma vez” – Foto: Arquivo pessoal

Marco da paisagem santista

Outros arquitetos também lamentam a demolição quase completa do antigo Mercado de Peixes.

“Durante quase 40 anos, o Mercado de Peixes cumpriu, com sucesso, sua função, atraindo sempre grande número de consumidores, moradores de Santos e principalmente turistas. O local era animado pela grande presença de garças voando ou pousadas na cobertura, nas árvores e até nos carros”, relembra Fabio Eduardo Serrano, arquiteto e professor da Faus.

Para ele, o edifício tinha uma qualidade arquitetônica que marcou a paisagem santista. “Marcou pela simplicidade e inteligência construtiva na sucessão de abóbadas de berço, solução rara, que a fazia merecedora de preservação e honrava o nome do arquiteto que o criou, morto prematuramente (Quintas faleceu aos 35 anos, na noite anterior à inauguração da obra). Por essa razão votei pela sua proteção através do tombamento. Mas nesse momento o mercado já estava condenado, porque a permanência total do edifício era incompatível com a solução do Centro de Convenções que ali já estava em construção”.

Na análise de Serrano, o local escolhido para os novos Centro de Convenções e Mercado de Peixes é inadequado em razão de ser um ponto de grande movimentação, que concentra o fluxo de automóveis, ciclistas e pedestres que se deslocam entre Santos e Guarujá.

“Nos primeiros dias de atividade do novo Mercado de Peixes isso já ficou claro pelos congestionamentos e falta de vagas de estacionamento provocados pela clientela que vai ao local para comprar frutos do mar. No futuro, esses problemas de circulação ficarão mais sérios”, destaca.

Serrano conta que as pessoas que se posicionaram contrárias à demolição do imóvel antigo chegaram a realizar um “abraço simbólico no Mercado de Peixes”.

“Foi um grupo de cidadãos conscientes da necessidade de preservar o nosso patrimônio construído. Mostramos à prefeitura a importância do edifício, já que o próprio prefeito não respeitou a obra do pai (em 1982, o prefeito de Santos era Paulo Gomes Barbosa, pai do atual, Paulo Alexandre Barbosa). Para compatibilizar com o Centro de Convenções e sua Praça, manteve a cobertura de uma das alas, reduzida a abrigo de pedestres. O que restou fica como memória arquitetônica do passado, que vai sempre lembrar e homenagear o arquiteto Quintas”, completa Serrano.

Foto: Reynaldo Salgado

Como um shopping center

Rafael Ambrosio, também arquiteto, urbanista e professor universitário, ressalta as diferenças entre as obras. “Enquanto o projeto do arquiteto Quintas propôs um mercado aberto ao seu entorno, funcionando como uma feira, convidativo ao pedestre, o novo Mercado se comporta como um shopping center. Um mercado fechado em uma caixa, cujo estacionamento é insuficiente e tem gerado problemas de trânsito. São duas propostas diferentes. Eu fico com a arquitetura charmosa e convidativa do antigo mercado”.

Ambrosio destaca que a prefeitura de Santos se portou durante esse processo conforme tem se comportado em relação a todas as grandes obras realizadas na cidade: “sem a devida transparência e participação popular, atropelando procedimentos burocráticos e de fiscalização, e sem dar valor ao patrimônio existente. Era completamente desnecessário demolir o antigo Mercado. Um descaso enorme contra nosso patrimônio arquitetônico”.

Ele acrescenta que preservar o patrimônio arquitetônico representa valorizar a história. “Para uma cidade cujos gestores se orgulham de dizer que é uma cidade criativa, o destino do Mercado seguiu o caminho oposto. O antigo Mercado, se não servia mais como espaço para comercialização de pescados, poderia ter tido outra destinação, como por exemplo, uma reforma para receber pequenas empresas, startups, servir de local para entidades organizadas da cidade utilizarem. Destinação é o que não falta. Porém, mais uma vez deu-se importância aos interesses privados do patrocinador das obras”, lamenta.

“Precisamos criar a cultura de valorizar nosso patrimônio arquitetônico. O Mercado de Peixes era um marco da arquitetura santista e merecia mais respeito. Uma sociedade só engrandece quando olha para o futuro cuidando do seu passado. A decisão da prefeitura foi desastrosa e de uma insensibilidade sem tamanho”, finaliza Ambrosio.

Demolição parcial

À época da inauguração do novo Mercado, em julho deste ano, o arquiteto Glaucus Farinello, gestor do Programa Nova Ponta da Praia da prefeitura, afirmou, em entrevista ao Folha Santista, que apenas parte do prédio do Mercado antigo seria preservada.

“Ficarão as estruturas em arco de concreto, até como uma opção na Praça nova, que vai ser quase uma extensão do novo Centro de Convenções. Essa parte da edificação vai servir como uma grande praça coberta, para abrigar uma série de atividades”, contou.

A proposta da prefeitura, no entanto, não contemplou a preservação completa do imóvel, conforme apontou o próprio arquiteto. “Vai ser parcialmente demolido. Vai ficar uma parte do edifício ainda de pé, como uma forma de cobertura. A gente vai fazer a demolição interna dos boxes e a cobertura em arco de concreto permanece numa parte. Basicamente metade dele. A porção mais próxima ao Centro de Convenções será demolida”, completou o arquiteto, antes da conclusão da obra.