Foto: EBC/Arquivo

Por Mari Polachini, Zuleica Nycz, Rafaela Rodrigues da Silva, Jeffer Castelo Branco e Marinez Villela Macedo Brandão*

A participação popular, enquanto controle social, nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação das políticas é um dos meios formais de manifestação democrática, garantida na Constituição de 1988 (Art. 193, C.F). Através desse mecanismo, abriu-se um importante canal de interlocução entre a sociedade civil e o poder público, permitindo que organizações e a população encontrassem um local de escuta e de representatividade.

Ter suas demandas consideradas no planejamento, projetos e nas decisões do uso das verbas públicas, garantindo que as demandas sociais sejam atendidas, é o anseio das Entidades da Sociedade Civil, espaços organizados da população de um município, território, que ressaltam a necessidade de atenção e equidade, especialmente aos que não estão sendo alcançados pelas políticas públicas e pelos bens e serviços essenciais.

A possibilidade de diálogo direto com os gestores locais faz dos conselhos, conferências, fóruns e comissões temáticas espaços preciosos de interação e devem possibilitar a elaboração de políticas públicas mais adequadas, garantindo que a sociedade civil, em seus três níveis federativos (municipal e regional, estadual e federal), seja ouvida de forma mais igualitária, validando e legitimando as reivindicações pontuadas por representantes aclamados ou eleitos pela própria participação popular.

Ampliar a possibilidade de atuação da sociedade civil de forma participativa nas decisões que impactem positivamente a sociedade passa pela articulação consciente, eficiente e eficaz com seus pares, de modo que se possa ter o entendimento das forças políticas antagônicas envolvidas e de como se processam os trâmites que determinam a formulação de políticas e a aplicação das verbas públicas, as concessões e permissões de uso e exploração do território que habita, quando atuando em instâncias de participação, como as já mencionadas, que discutem e deliberam sobre as políticas públicas.

Facilitar e respeitar a participação da sociedade civil organizada permite que temas de extrema relevância para a vida nos territórios rural e urbanos municipais sejam disponibilizados para conhecimento público, deixando de ser informação privilegiada de gabinete apenas para os que detém o poder.

Importante frisar os níveis federativos de participação, como os Conselhos Municipais, Comitês Regionais, Conselhos Estaduais e Conselhos Nacionais, sobre as mais variadas temáticas, tais como saúde, meio ambiente, educação, turismo, segurança alimentar, direitos humanos, entre outros. Essa projeção participativa do micro para o macro, iniciando em seu próprio município, em uma expansão para todo o território nacional, é um projeto abrangente de gestão e controle social.

No entanto, a prática democrática de fato está longe de refletir a teoria, encontramos a ingerência da gestão pública desvirtuando o caráter democrático dos colegiados, interferindo na sua composição, tolhendo os instrumentos legítimos de escolha da sociedade civil que garantiriam o preenchimento das cadeiras com representantes fidedignos às suas demandas. Também é comum nos depararmos com sistemas eletivos que nem de longe trazem qualquer aspecto democrático que deveria ser a essência desses fóruns participativos.

Em âmbito municipal, um artifício usado com frequência é o “aparelhamento” dos Conselhos de Direito, onde administradores públicos, por meio das suas relações de poder, ocupam as vagas do colegiado com pessoas e entidades de sua confiança, geralmente fomentando um sistema de trocas totalmente contrário aos preceitos democráticos. Dessa forma, ao garantir os votos de parte das cadeiras da sociedade civil consegue sempre a maioria necessária para emplacar suas propostas e aprovar suas pautas. Essa artimanha é usada com mais frequência em conselhos com função deliberativa e fiscalizatória, que aprovam contas, projetos e decidem sobre uso de verbas públicas, como, por exemplo, o Conselho Municipal da Cidade e o Conselho Municipal da Saúde.

Entretanto, a despeito da legislação que visa garantir o controle social, que é a participação da população nas tomadas de decisão das instâncias governamentais, acompanhando e fiscalizando as ações das administrações públicas, garantindo o atendimento eficaz e eficiente do cidadão; a nossa frágil democracia dá margem a que se criem mecanismos que enfraquecem e, em alguns casos, até anulem a presença da sociedade civil nos colegiados.

A escolha das entidades que irão ocupar as vagas da sociedade civil nos diversos conselhos nem sempre segue diretrizes verdadeiramente democráticas. O formato adotado pelo Conama, Conselho Nacional do Meio Ambiente, e seguido por muitos colegiados no país afora, coloca a escolha de quem irá compor essas cadeiras sob a responsabilidade da própria sociedade civil, que em um exercício de democracia legitima e elege seus próprios pares, devidamente avaliados por um fórum de entidades. Afinal, ninguém melhor do que os que atuam nos diversos segmentos das construções coletivas para identificar aqueles que verdadeiramente envidam esforços em busca do bem comum e que representam os direitos coletivos.

Porém, há conselhos nos quais as cadeiras designadas à sociedade civil têm sido ocupadas por entidades que nem sempre retratam efetivamente os anseios da população, alinhadas com a administração pública, desequilibrando a paridade que deveria nortear esse espaço participativo. Como por exemplo, representantes da Sociedade Civil no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) que advoga e outra que peticiona na justiça contra o Ministério Público, a exemplo do processo contra a localização de um terminal de regaseificação no litoral de São Paulo, que receberá as embarcações, de elevado potencial de perigo ambiental e social, popularmente chamadas de “navio-bomba”.

Um caso recente, ilustrativo dessa deturpação na ocupação das vagas de um colegiado, é o do Condesb (Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana da Baixada Santista) da Agem (Agência Metropolitana da Baixada Santista), que durante anos atuou sem a participação formal da sociedade civil, tendo seus assentos divididos entre representantes do governo do estado, indicados pelas secretarias, e representantes de governos dos 9 municípios que formam a região.

Em 2021, uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) determinou que metade dos assentos fossem destinados à sociedade civil, garantindo a paridade exigida pela legislação. No entanto, com 18 cadeiras para o estado, 9 para os municípios e apenas 9 para a sociedade civil fica evidente que a alegada paridade não foi atingida, se aos governos (municipal e estadual) se designaram 18 cadeiras, à sociedade civil devem ser designadas 18 cadeiras.

Outra ressalva encontrada no processo de admissão da sociedade civil no colegiado foi a forma como se deu a escolha das entidades, sem nenhuma informação ou transparência. O chamamento para organização, assim como a avaliação e deferimento ou indeferimento dos inscritos, não contou com a participação da sociedade civil, mas se deu por agentes do governo. Associações com décadas de existência e atuação reconhecida na região tiveram sua solicitação de ingresso recusada, enquanto outras, que em nada representam a população da região, foram escolhidas para integrar o colegiado, que além das inconformidades, não chegou a preencher todas as 18 vagas, conforme decisão do Tribunal.

Outras formas de aparelhamento ou desestruturação das instâncias de participação popular são utilizadas, causando repercussões negativas na elaboração das políticas públicas, foi o que se verificou no Conselho Estadual de Meio Ambiente de São Paulo (Consema) e Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Ambos sem paridade, em que 50% das cadeiras deveriam ser destinadas às Entidades da Sociedade Civil legitimadas e, a partir daí, eleitas por seus pares. No caso do estado de São Paulo, depois de anos de ataque à legislação, resultou em um processo de deterioração das decisões daquele Conselho.

Esse processo foi denunciado ao Ministério Público pelo Coletivo de Entidades Ambientalistas de São Paulo, esfera em que historicamente se reuniam e se organizavam as ONGs cadastradas no Consema. Essa situação contribuiu para que em 2021 fosse retirada a participação representativa na gestão desse colegiado, não legitimando assim esse processo caótico instalado naquele Conselho.

O Conama também não passou ileso. Em 2019, esse Conselho de 93 cadeiras ficou com apenas 20, a Sociedade Civil, das 22 cadeiras que possuía, ficou com apenas 4, definidas por sorteio por determinação do então ministro do Meio Ambiente da época. Somente em 2022, em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o Conama elevou o número de cadeiras para 36, as ONGs ficando com 8, no entanto, nesse período a Política Nacional de Meio Ambiente foi severa e propositalmente afetada.

O atual governo, por força da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 623 (ADPF 623) de 22 de maio de 2023, reestruturou o Conama, ficando atualmente com 113 cadeiras (+1), 79 destinadas a órgãos governamentais, 22 para entidades da sociedade civil, 8 para entidades empresariais e 4 sem direito a votos, divididas entre as comissões de meio ambiente da Câmara e Senado e Ministério Público Federal e Estadual.

Tendo o STF, por meio da ADPF supramencionada, também decidido pela paridade do Conama, foi criado o Grupo Assessor de Revisão da Composição do Conselho (Garco), que iniciou uma intensa discussão, sendo que algumas ONGs estão tendo dificuldades de entender a importância da paridade de 50% das cadeiras serem destinadas à sociedade civil, exarada no acórdão do Supremo, composta por representantes que conheçam a diversidade ecológica e ambiental em suas agendas azul, verde e marrom.

Conforme manifestação do Ministério Público Federal (MPF) no Garco, a composição atual do Conama apresentado em tabela não atende à decisão exarada na ADPF 623. A atual alocação do poder de voto no plenário do colegiado do Conama ficou distribuído da seguinte forma: 71,81% dos votos estão concentrados entre entes governamentais, 27,26% destinado à sociedade civil, sendo 14,54% para entidades ambientalistas e 7,27% destinado a entidades empresariais, 5,45 para outras entidades da sociedade civil, 0,93% para membros honorários. O MPF conclui que nesse quadro os representantes da sociedade civil não têm efetiva capacidade de influência na tomada de decisão.

Contrariando a ADPF 623 e a posição do MPF, uma parte da sociedade civil no Conama apresentou uma proposta de paridade que também contraria uma importante parcela do Movimento Ambientalista: 48,10% para órgãos governamentais, 3,87% ao setor empresarial e 48,10% para a sociedade civil, incluindo a comunidade científica, que em alguns casos, não atende aos interesses sociais, sobretudo quando seus representantes são indicados pelo setor empresarial ou governos. Por sua vez, o governo, segundo informação, oferece algo em torno de 44% de assentos para a sociedade civil.

Essa parte contrariada com essa proposta que partiu de um dissenso da sociedade civil é enfática em declarar sua discordância em documentos encaminhados, e que está totalmente de acordo com a paridade concreta de 50% das cadeiras do Conama para a sociedade civil ambientalista, nos termos do Acórdão da Decisão da ADPF 623, manifestada pela ex-ministra do Superior Tribunal Federal (STF), ou seja, é preciso qualificar melhor os representantes da sociedade civil, uma vez que mesmo com a justiça buscando o equilíbrio de força em um colegiado tão importante, estão sendo incapazes de enxergar o óbvio.

Por esses motivos temos, a exemplo, a desestruturação do sistema nacional de meio ambiente e o enfraquecimento dos órgãos ambientais, em que suas decisões e licenças são questionadas extra e judicialmente, tais como a cava subaquática, o terminal de regaseificação, a falácia do CDR (combustível derivado de resíduos) e da incineração com recuperação de energia.

Pode estar também ligada a essas manobras, a difícil solução no caso do despejo clandestino, em várias localidades da Baixada Santista, de resíduos organoclorados produzidos em Cubatão, em que não se discute, no âmbito das instâncias de participação e controle social, o impacto continuado que representa a permanência de estoques desses resíduos, como as 33 mil toneladas na estação de espera no Distrito da Área Continental de São Vicente e as áreas contaminadas em Cubatão, que comportam na antiga área produtiva cerca de 8 mil toneladas de resíduos puros enterrados no subsolo.

Pesquisa muito bem elaborada, sob o ponto de vista científico, concluiu que entre outros organoclorados, o hexaclorobenzeno (HCB) pode, por inalação, levar a um aumento no risco de desenvolvimento de tumores hepáticos, sendo que indivíduos residentes nas áreas contaminadas por resíduos de organoclorados estão sob maiores riscos. Outra importante pesquisa indica que estas pessoas que estão expostas a essas substâncias tóxicas deveriam ter um acompanhamento de saúde específico. Um problema que se perpetua durante anos sem solução efetiva e sem a devida participação social.

Enquanto isso, o controle social segue a passos incertos, em uma democracia garantida por uma Constituição Cidadã exemplar, mas que não se reflete na realidade enfrentada pelo povo que deve, no estrito interesse social da população, ocupar os espaços participativos que foram sucessivamente sendo criados ao longo desses 36 anos desde sua homologação, a trajetória de luta e resistência da sociedade civil na busca de representatividade segue enfrentando percalços e subterfúgios em uma democracia ainda arraigada à herança de uma ditadura militar, de violentos silenciamentos ao controle social, que durante 40 anos, apoiada por interesses empresariais necrocorporativos, mantiveram a população alijada de voz e poder de decisão nos rumos do seu próprio país.

*Engª Mari Polachini, Bacharela Zuleica Nycz, Dra. Rafaela Rodrigues da Silva, Dr. Jeffer Castelo Branco e Dra. Marinez Villela Macedo Brandão são pesquisadores do Núcleo da Baixada Santista do Observatório das Metrópoles, que desenvolve o projeto Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.