Foto: Divulgação/Sebrae

Caminho descalça sobre a areia quente da praia e sinto minha sola dos pés em brasa. Chego no frescor das ondas que batizam e me acolhem com sua água salobra. Será que sempre é assim? Em momentos difíceis podemos nos refrescar e encontrar refúgio na água salgada de nossas lágrimas?

Entro no mar, como não fazia desde antes de o mundo parar pelo isolamento social. Sinto as algas no fundo do oceano, uma textura pouco familiar que me causa até um riso. Logo depois, um pouco de aflição, a água com uma temperatura ainda desafiadora toca minha barriga, minhas costas e chega no meu pescoço. Mergulho! Submersa, me sinto livre e aguço minhas sensações e percepções. Volto à superfície para resgatar o oxigênio e depois retorno para o interior do oceano, que me remete ao interior de mim mesma.

Penso nas mudanças inerentes aos ciclos da vida e que me pareceram aceleradas nesses últimos anos. Perdi pessoas, rompi relações, reajustei expectativas e reinventei sonhos. É um processo que é mais fácil de descrever do que de viver, pois me é doloroso. O mundo pressuposto de cada fase sempre me parece insolúvel e seguro, mas precisa ser desconstruído, mesmo porque, não somos os mesmos a vida toda. Vamos nos transformando na medida em que as experiências aumentam nossa bagagem e nosso repertório.

No final das minhas aulas de cuidados paliativos costumo citar a frase do poeta Fernando Pessoa que diz: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

Abandonar essas roupas tem sido um desafio para mim. Diante de mudanças, me vejo apegada às roupas ou até mesmo remendando algumas que, evidentemente, não me servem mais. Como é difícil aceitar algumas das estradas dessa travessia.

Trabalho diariamente com os desafios da reinvenção devido a processos de adoecimento, e um dos maiores desafios da minha vida envolveu aceitar as limitações de um acidente vascular cerebral do meu vô Milton, que modificou nossas vidas.

Aos 77 anos, era um homem saudável, trabalhava regularmente, tinha uma boa vida social e era um pilar nas decisões familiares. Infelizmente, num rompante abrupto, fugaz assim como um instante, ele teve um derrame cerebral que atingiu seu lado motor à direita e a sua fala.

Com isso, ficou totalmente dependente de terceiros para as atividades simples de rotina e para a higiene pessoal. Foi difícil para todos e todas, não só pelas adaptações de cuidados, mas também porque tivemos de aprender a tomar as decisões sem consultar o vô.

Minha vó Tata adaptou sua rotina para cuidados de reabilitação e abriu sua casa para cuidadores, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, enfermeiros que nos apoiaram e foram essenciais na rotina. Minha mãe e minhas tias fizeram escalas para auxiliar em tudo que foi necessário. Quando isso aconteceu, eu não tinha entrado na residência de oncologia e nem na formação em cuidados paliativos.

Mas, fico com o coração em paz, apesar da saudade, porque entendo que fizemos tudo que foi possível para que ele vivesse bem até seu último dia de vida. Ele teve cuidado multiprofissional, teve seus sintomas controlados e teve muita dignidade, pilares importantes da boa prática em saúde.

Essa semana acordei pensando no meu vô, hoje escrevi esse texto e lembrei dele. Acho que tenho pensado muito nele, porque minha avó se mudou recentemente do apartamento em que viveram por 30 anos, e acho que lá estão as minhas melhores memórias dele.

Há cerca de dois meses, fui no apartamento retirar as coisas da mudança e foi difícil ver a casa vazia. Ver a cozinha sem a mesa que meu avô adorava tomar sua sopa de ervilha. Ou ver a sala sem o sofá onde cada um fazia o que apreciava: ele as palavras cruzadas e ela o crochê.

A casa vazia me remete, possivelmente, ao meu vazio pela falta que ele me faz. A casa nova me enche de expectativas, mas ela também ainda está vazia de sentimentos. No fundo, o mais precioso não é o que está fora, mas o que está dentro de nós.

Volto da praia, abro o armário e crio coragem. Retiro as roupas que não me servem mais e abro espaço para o novo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista