Imagem Ilustrativa - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Às vezes o coração, rasgado pela dor,

vira retalho.

Recomenda-se nestes casos,

costurá-lo com uma agulha chamada recomeço.

É o suficiente”. (Cora Coralina).

Faz um tempo que eu não tenho a sensação de paz e segurança como eu tinha quando era uma menina e andava no colo dos meus avós e da minha mãe. Não que eu tenha algum problema grave na minha vida. Eu, de fato, não tenho. Estou com a minha saúde em dia. Tenho um trabalho que me satisfaz e estou com as minhas redes de afeto sólidas. Mas o caminhar pela vida me faz perder o acolhimento que uma infância bem estruturada traz. Parece que os problemas corriqueiros da vida me deixam com uma inquietação inerente. Nos períodos difíceis eu tento acessar em minhas recordações de infância para que me ajudem a seguir.

Este final de semana, abrindo gavetas que nunca abro, achei um refúgio no fundo do armário. Depois de me procurar entre roupas bem guardadas, fotografias amareladas e toalhas nunca usadas, eu achei um VHS que tem o registro de aniversário meu e o do meu irmão de seis e quatro anos, respectivamente.

Eu costumo esquecer rápido os acontecimentos da minha vida. Mas este aniversário, o único que tenho em vídeo, mantém esse momento na minha memória. Talvez se eu não tivesse essa fita não me lembraria da minha bisavó Maria sentada na janela da sala. Acho que essa é a minha lembrança mais vívida dela. Eu estou com uma blusa branca com flores bordadas e uma saia cor de rosa e passo uma boa parte da festa dançando e pulando. Meu irmão, não. Ele passa a maior parte da festa em cima da mureta do portão que protege a casa.

Assisto e penso que gosto de dançar desde pequena. E isso me chama a atenção para a trilha sonora da festa. A fita começa com a casa toda arrumada, ainda com poucas crianças, e há closes da mesa toda enfeitada com o tema dos Ursinhos Carinhosos. No fundo toca a canção “Help” dos Beatles. Há cortes e edições das imagens que, com a tecnologia de hoje, parecem bem amadoras. Mas minha mãe investiu, aquele era um trabalho profissional contratado. Depois, a canção que mais me marca é “Emília, a boneca gente”, cantada pela Baby do Brasil. Ao som de “Emília” a gente brincou de estátua, de morto e vivo, de “gosta desse” e de outras brincadeiras dos anos oitenta.

Hoje, depois de trinta e seis anos desta festa, eu ainda danço. Mas perdi muito do brilho. A ingenuidade já não cabe no meu calendário. Sofro de delicadeza. Depois de tantos tropeços me sinto com a alma calejada. A felicidade infantil, para a adulta de hoje, não cabe mais. Se a Juliana de seis anos me perguntasse o porquê de eu não ter sido feliz à sua maneira eu diria que a felicidade, ao menos como ela imagina, não existe.

*

Hilária nasceu na Serra Talhada, Pernambuco, em 1935, na terra de sua mãe, Francisca Macambira. Dizem que ela nasceu numa noite de lua cheia e teve seu nome dado pela parteira da região porque, ao invés de chorar, riu ao nascer. Foi uma menina travessa e feliz. Mas era filha de Chica, uma seguidora de Lampião, mulher que viveu as rígidas regras sociais do cangaço onde o castigo era sinal de ordem, e quem sabe de amor. Às vezes, a menina apanhava apenas porque estava gargalhando sem motivo aparente. As surras eram dadas com as cordas vindas dos cactos do seu quintal. E ela, às vezes, só parava de bater depois de jorrar alguma cascata de pele e dizia que doía mais nela do que na sua primogênita.

Por isso, apesar da natureza leve, não tardou a dar os braços para a amargura. Foi criada numa terra seca. Desde cedo aprendeu, assim como as plantas da caatinga, a criar espinhos para não ser comida. Os espinhos das macambiras são reservatórios de água e urticantes. Tomar uma surra destes cactos pode ser fatal. Hilária Macambira lidou desde cedo com a seca de sentimentos de sua família. Criou espinhos aos afetos para não tropeçar nas emoções. Os ferrões foram crescendo lentamente e foram se alastrando. Centímetro por centímetro de seu corpo. Cresceu numa cultura familiar em que podia ficar irritada, mas não magoada ou triste. Não sabia diferenciar raiva de angústia. Ou tristeza de decepção. Chegou um momento em que ela se engasgava com as lágrimas e sentia falta de ar quando estava alegre.

Um dia, ainda jovem morando na casa da mãe, foi tomada pelo arrepio mal sentido no peito. Aquele frio que fica entre a garganta e o coração. Estava apaixonada. Voltou para casa. Escolheu cuidadosamente o que caberia numa mochila. Não queria dar espaço para desconfianças. Levaria apenas o necessário. Fechou a porta do quarto e saiu. Parecia o fim, mas era apenas o começo. Saiu antes que a barriga fosse visível.

Não foi fácil sair. O mundo dava medo. A vida era perigosa. Mas alegria não tem causa. Alegria só é. E assim que ela saiu de sua casa, se libertou de algumas amarras, como se o peso que a prendesse à terra sofresse um revés. Ela ganhou asas e pôde imitar a leveza do movimento das nuvens. Se rebatizou: Hilarita Macambira.

Hilarita acompanhou o pai de seu filho para a região do Pajeú, ainda sertão pernambucano, para a capital dos repentistas: a cidade de São José do Egito. Um lugar que há dezenas de anos, diz a crença popular, uma viola foi enterrada no leito do rio Pajeú. Desde então, quem beber de sua água, virou poeta.

Desde que logo lá chegou parece tudo rimou:

Quando ela menos percebeu

Seu filho João nasceu e cresceu.

Ele gostava de brincar de boi de osso

E ainda pegava piaba no poço

Ela criou seu filho livre e sem violência. Teve, ao todo, cinco filhos. Passou a vida redescobrindo a menina que sorriu ao nascer. E nada como o tempo. Aquele que pode ser livre com as memórias e generoso com os perdões. Ela jogou fora o peso da vida e foi brincar. Brincar com as palavras. Brincar com a vida. Dedicou seu tempo para a poesia. Apaixonou-se por Cecília Meireles. Aos oitenta anos, no dia que soube que estava com uma doença avançada, chamou os familiares para a sala e, com o resultado do exame na mão, declamou:

“Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios

nem o lábio amargo.

 Eu não tinha estas mãos tão sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração que não se mostra”.

Hilarita explicou aos seus familiares sua condição. Disse que a médica tinha sido clara: não havia cura. O foco seria conforto e que ela pudesse viver tão bem quanto fosse possível.

Apesar da poesia, não foi fácil para ela aceitar o processo do adoecimento. Tiveram dias em que ferrões voltaram a crescer como nos tempos antigos onde havia os escudos de emoções. Ou ainda tardes de tempestades internas cuja angústia era tamanha que era como se as flores de seus cactos fossem arrancadas numa tempestade de vento, deixando uma fissura em cada espinho. Nenhuma palavra seria capaz de exprimir a dor. Nestes dias ele se calava.

No começo, Hilarita sentia poucos sintomas, mas com o tempo sentia suas pernas sem a mesma força. Seu apetite foi diminuindo. Seu corpo ficando franzino. Sua pele pegajosa e pálida. As palavras foram diminuindo. Ela recitava pouca poesia e falava apenas o essencial. Como se já estivesse numa viagem para dentro de si.

Um mês antes de sua partida nasceu sua bisneta. Quando ela soube que a neta estava grávida comprou um caderno feito de folha de bananeira que denominou “O livro sobre começos”. No nascimento de Lara ela entregou a brochura junto com uma roupinha bordada a mão. Na primeira página lia-se: “Começos são frescos e potentes. Boa vida, minha bisneta!”.

Na sua partida havia lágrimas, mas também alegria. Assim como foi seu nascimento.

*

Recoloco o vídeo do meu aniversário para assistir mais uma vez. Penso nas alegrias que eu tinha ao ter seis anos. Talvez eu quisesse uma nova boneca. Ou, ainda, desejava ir para o acampamento de verão da escola.

De novo começa a reprodução da fita. Imagem foca na mesa toda enfeitada. Na trilha sonora:

Help me if you can

I´m feeling down”.

O recado é claro: junte-se você com os seus cacos. Os velhos com os novos. Tudo junto e misturado. Reconcilia-se e siga com o mesmo propósito.

(Canção IV – Hilda Hilst, in jubilo, “Memória e Noviciado da Paixão”, musicado por Zeca Baleiro, cantado por Jussara Silveira).

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.