Foto: Greg Hume/Via Wikimedia Commons/CC-BY-AS 3.0

“E ele diz que se chama Jonas

E ele diz que é um santo homem

E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria”

(Sá, Rodrix e Guarabyra).

Eu sempre demonstrei aos que me rodeiam que sou uma mulher de coragem. Não me faltou confiança nas andanças por trilhas difíceis com uma mala pesada nas costas. Nem destemor em uma viagem de bicicleta por terrenos arenosos brasileiros. Ou ainda não titubeei em descer o teleférico do morro da Asa Delta da cidade de São Vicente. Já que estou aqui, abrindo minha intimidade, preciso dizer que não, não sou sempre assim! Não posso, então, deixar de citar o meu chilique ao arrancar uma unha do pé que estava condenada após uma dessas aventuras de férias. Mas esta história poucas pessoas sabem. 

Exponho aos outros uma valentia que me deixa órfã em alguns outros momentos delicados da minha vida. Nestas ocasiões me sinto desamparada e apavorada. Em queda livre, quase como sem conseguir respirar, como foi no processo de adoecimento e morte dos meus avós ou ainda no momento que me encontro de entender os quarenta anos e seus impactos. Ou ainda de descortinar quem eu sou, minha história e as minhas escolhas que me trouxeram até aqui. 

Foi essa a reflexão que me veio após uma conversa com Jonas, um homem de 52 anos que começará o tratamento por um câncer avançado. Ele estava passando pela primeira consulta e estávamos esclarecendo como será o plano terapêutico. E percebemos que será um tratamento que exigirá muito dele. Exigirá tempo para exames, consultas e aplicações de medicações. Resiliência para as mudanças expressivas que podem vir a ser evidenciadas no espelho. E ainda a elucidação dos possíveis efeitos colaterais do tratamento. E, acima de tudo, exigirá coragem. Coragem de apostar alto de que o risco existe, mas que pode dar certo. Eu, com receio de saber como começar essa conversa, perguntei até onde ele estaria disposto a ir. Ou ainda a que sacrifícios ele estaria disposto a se submeter. 

Ele não me respondeu imediatamente. 

Primeiro me pediu para eu ouvir a sua história…

Nasceu numa família caiçara criada nos machucheiros do bairro da Ponta da Praia na cidade de Santos. Seu pai, Josué, cresceu em um bangalô de um sítio de chuchus, numa rua de terra que tinha suas fronteiras delimitadas pela dinâmica das marés.

Quando pequeno brincava e se alimentava das finas carnes de caranguejos, que de tanto ter os cascos lambidos, reluziam como pedras preciosas. Mas o ganho era pouco e a família enfrentava a morte diária pela fome. Por isso, com Jonas ainda pequeno, a família se mudou para Ilha Diana em busca de feijão e de sonhos *. 

Ele foi uma criança com muita criatividade. Adorava brincar com sua imaginação. Logo que chegou à ilha, ainda pouco habitada, ouvia o rugido do oceano e ficava imaginando feras subaquáticas que poderiam devorá-lo. Numa tarde viu o que achou ser um peixe branco como a neve e de tamanho considerável nadando perto de bancos de areia. Procurou barbatanas e não achou. Jurou para a mãe que viu esguichos de água na parte de cima da cabeça. Já imaginava uma grande baleia no fundo do mar. Num primeiro momento teve medo. Passou um verão inteiro sem dar um mergulho sequer. Mas depois de alguns meses foi se aventurando nas ondas. Ele caminhava na areia quente e logo suas solas dos pés pediam um refresco. A água salobra o foi envolvendo como um berço seguro. E a cada mergulho ele se libertava de inseguranças e se enfeitiçava mais pelo mar em busca do seu grande peixe.

Seu Josué, com receio de acidentes, levava o filho quando ia pescar e lhe ensinou a mergulhar em apneia. Foi evoluindo na capacidade de administração do tempo e logo Jonas ficava cerca de cinco minutos com ar retido, submerso, à procura de sua baleia que agora já era de estimação. Dentro do mar, adorava a sensação paradoxal de ser empurrado no sentido contrário da gravidade. Se sentia em um mundo mágico, portador de um superpoder quando descobriu que conseguia carregar objetos pesados. Numa expedição ele achou um navio naufragado que conseguiu erguer do solo. E ainda sorria encantado ao fazer malabarismos com âncoras que na areia não conseguiria sequer carregar. 

E o rapazinho que era apaixonado pelo mar não poderia ser outra coisa além de mergulhador. Ele foi para o mar menino em busca do seu animal marinho e não se contentou com mergulhos livres. Fez capacitação profissional e desde então trabalha numa das profissões mais perigosas do mundo. Mas não tem medo. Pelo contrário, se sente num ambiente lúdico quando está nas profundezas sem luz do oceano. Já trabalhou conectando tubulações, fazendo soldas, realizando limpeza de estruturas subaquáticas de navios. Foi um verdadeiro operário de fábrica debaixo da água! Mas foi com a pesca submarina que ele se encantou. Ele desce até quarenta metros de profundidade e pesca mais de 600 kg de peixe em minutos. Na sua última saída pegou garoupa, badejo e cherne. Não pesca peixes pequenos para evitar a extinção. 

A Matilde Campilho, poeta lisboeta, escreveu uma vez:

“O amor ainda é o estandarte onde vamos pendurando as bandeiras

A coragem ainda é o ferro onde vamos pendurando as roupas

Sim ainda rasgamos nossas roupas

Sim ainda esfolamos os joelhos

Mas agora é tudo em nome de uma certa mudança”.

Eu e o Jonas nos miramos.

E sim, ele terá a coragem de rasgar a roupa, esfolar os joelhos e se arriscar pelo que acredita.

E eu? Terei a coragem de assumir a mudança e demonstrar as minhas fragilidades?

*Referência ao romance do escritor brasileiro Orígenes Lessa, publicado em 1938.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.