Produtoras rurais de Peruíbe, que comercializam caixas agroecológica previamente encomendadas pelos consumidores – Foto: Divulgação

Quando realizei a minha tese de doutorado, estudei os efeitos das redes sociotécnicas com foco no papel das políticas públicas para a viabilização de projetos de desenvolvimento socioeconômico municipal e regional.

A primeira preocupação que tive foi conceituar políticas públicas. Ao ler obras de alguns autores, considerei que trata-se da ação do Estado, implementada pelos governos, que conduz as suas instâncias e organizações, que permite realizar intervenções sobre as dinâmicas econômicas e sociais, seus atores e instituições.

Assim, políticas públicas são um conjunto de programas de caráter governamental, visando coordenar os meios à disposição do Estado e às atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.

Refere-se, portanto, a um conjunto de decisões formalizadas sobre um assunto de interesse coletivo, que é considerado importante e prioritário para o desenvolvimento social. É a expressão formalizada de diversos interesses processados. As políticas públicas emanam do poder público que as formaliza, legitima e controla.

Em função do projeto que o governo representa, mobilizam-se os instrumentos necessários e articulam-se os segmentos sociais comprometidos com a sua execução para obter os resultados socioeconômicos planejados.

Esse processo não é livre de disputas, visto que a sociedade é integrada por diferentes segmentos que possuem os mais variados interesses e reivindicações, que são processados na esfera política.

Isso significa que uma política pública é, necessariamente, uma construção social, cuja configuração dependerá de múltiplos fatores próprios da sociedade e do sistema político existente.

Essas características da elaboração e execução das políticas públicas, como ferramenta de redistribuição dos recursos arrecadados por meio de impostos, nos sugere que os movimentos sociais devem disputá-los para o fortalecimento das suas causas. Afinal, não é possível adotar inovações técnicas e organizacionais sem recursos financeiros, legislação adequada, assessoramento.

Por outro lado, há a necessidade de os movimentos manterem o distanciamento de governos, não serem tutelados ou utilizados para fins eleitorais.

Entende-se como movimento social a mobilização coletiva, que se opõe às formas de dominação social instituídas, responsáveis pelas desigualdades socioeconômicas, racismo estrutural, exploração das mulheres, feminicídio e degradação do meio ambiente.

A economia solidária (EcoSol) também se estrutura por meio de movimento que o caracteriza como social, pois tem o objetivo de construir uma economia fundamentada na associação dos trabalhadores e consumidores, autogestionária, sem patrões ou empregados.

O movimento de EcoSol deve lutar para que os governos implantem ações que sejam resultado da participação daqueles que integram os empreendimentos e iniciativas econômicas solidárias. A participação não deve ser entendida somente como a divulgação de uma informação governamental já definida nos gabinetes ou uma consulta aos interessados para que a decisão seja tomada a portas fechadas. Esses níveis de participação são verticais e devem ser denunciados e substituídos.

Deseja-se a implantação de metodologias que promovam a participação horizontal para que governo, integrantes dos empreendimentos e iniciativas solidárias e do movimento de EcoSol possam experienciar processos fundamentados na concertação, com as decisões como resultado de estudos, formação e muito debate em espaços de escuta.

Caso o movimento de EcoSol não se mobilize para disputar os recursos públicos no seio do Estado, obviamente que as decisões dos governos priorizarão o capital, como normalmente ocorre.

O primeiro passo é exigir a implantação do marco legal que regulamentará a implantação de programas e ações de EcoSol. Na Baixada Santista, infelizmente, os municípios de Santos, Cubatão e Guarujá já têm legislações que possibilitam aos governos municipais implantarem políticas públicas de EcoSol, mas não o fazem.

Itanhaém, Praia Grande, Bertioga e Mongaguá sequer têm legislação. São Vicente e Peruíbe aprovaram leis em 2020 e iniciaram os debates para a implantar as políticas de fortalecimento de EcoSol, principalmente em Peruíbe.

No entanto, pode-se destacar o empenho de servidores públicos, que assumiram a EcoSol em alguns municípios, e ações com grupos específicos que são realizadas em parcerias com associações.

Itanhaém, por exemplo, se destaca neste caso com os agricultores familiares e artesãos. Em outubro de 2020, a Câmara Temática de Agropecuária, Pesca e Economia Solidária do Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana da Baixada Santista (Condesb) encaminhou aos prefeitos a solicitação para os governos municipais implantarem a legislação de EcoSol onde não existe e, obviamente, a operacionalizem.

As políticas públicas de economia solidária podem ser inovações organizacionais que fortalecerão a lógica de inclusão socioeconômica fundamentada na relação trabalho/renda e não emprego/salário.

No entanto, alguns prefeitos da Baixada Santista, ao invés de optarem pelo endodesenvolvimento, ou seja, no investimento no talento da população e fortalecimento do mercado local, sonham e agem para a implantação de aeroportos, usinas termoelétricas e de incineração de resíduos sólidos que agravarão os problemas ambientais e socioeconômicos.

Alguns, quando candidatos, propagavam que trarão empresas para os seus municípios em um quadro de aumento do desemprego, índices crescentes de inflação e aumento da pobreza.

Há locais na Baixada Santista em que a população em situação de rua lamenta o fato de o lixo estar escasso em alimentos, ou seja, não há restos suficientes que sirvam de refeição.

Desgraçadamente essa situação não é uma exclusividade da nossa região. Esses fenômenos são observados por todo o país. Por isso, os militantes do movimento de economia solidária devem disputar os recursos públicos para a implantação de programas, projetos e ações com fundamentação na lógica do bem-viver, que valorize a qualidade de vida do conjunto da sociedade, e não a priorização dos interesses de grupos econômicos capitalizados.

As políticas públicas de EcoSol exigem não somente leis que deem legalidade às ações de caráter governamental e disponibilização de recursos financeiros para investimento nos empreendimentos econômico solidários. Há necessidade, também, de assessoramento técnico e organizacional de forma continuada e a maioria dos grupos não tem condições de se autofinanciar.

Os governos que têm o objetivo de promover a inserção socioeconômica perdem grande oportunidade em não adotar política pública para desenvolver e fortalecer os grupos autogestionários, que se organizam para prestar serviços ou produzir sem patrões, com base no associativismo e no cooperativismo.

No entanto, caso os governos eleitos dos nove municípios da Baixada Santista queiram implementar ações que promovam inclusão socioeconômica, com base na promoção da democracia econômica por meio da EcoSol, o Fórum de Economia Solidária da região apresentou um documento com 54 ações que podem ser implementadas. (veja aqui).

O movimento de EcoSol se organiza em três segmentos, desde a criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, em 2003. Há os representantes dos empreendimentos econômico solidários, os gestores de políticas públicas e aqueles de apoio, que comumente integram as universidades ou são voluntários.

Considerando a possibilidade de implantação de políticas públicas de EcoSol por governos municipais, estaduais ou federal, o FESBS realizou, no segundo semestre de 2020, três lives com o tema “Gestão de Políticas Públicas de Economia Solidária”.

Cada uma contou com profissionais específicos dos segmentos citados com experiência na EcoSol. O objetivo foi tirar ensinamentos para que governos e o movimento de EcoSol possam ter referências.

Assim, no presente texto, vou destacar as afirmações e reflexões que considero mais relevantes da live com representantes dos empreendimentos econômico solidários sobre a importância das políticas públicas para o fortalecimento da EcoSol.

Entretanto, posso me equivocar quanto ao que destacarei. Dessa forma, o acesso à live, que pode ser consultada na íntegra, deve ser feito no seguinte endereço. (veja aqui).

O debate foi realizado com Nelsa Nespolo, Arildo Lopes, Guilherme Prado e Adolfo Homma. A mediação foi feita pelas integrantes do FESBS, Marcia Farah Reis e Ingrid Machado.

Nelsa Nespolo, é uma das coordenadoras da Justa Trama, com sede em Porto Alegre/RS e integrada por um conjunto de cooperativas de agricultores familiares, que produzem algodão orgânico. São trabalhadores de uma fábrica recuperada, que produz tecido, extrativistas de sementes, mulheres que confeccionam roupas e um banco comunitário.

Nelsa destaca que a ação governamental foi de fundamental importância para o início dos trabalhos de organização da rede, seja com a criação de legislação, financiamento, certificação de produtos da EcoSol, assessoramento técnico e para gestão.

Ela afirma que as políticas públicas fazem a EcoSol avançar e que o governante não pode tirar da sua cabeça o que vai fazer. Tem que ouvir os representantes dos empreendimentos econômico solidários e dar continuidade às ações do governo anterior quando há mudanças.

Destaca a importância da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) – criada em 2003 no governo Lula, desmontada em 2016 no governo Michel Temer e destruída pelo governo de Jair Bolsonaro – que disponibilizou recursos financeiros e promoveu aproximação com entidades vinculadas ao movimento social, como o Fórum Brasileiro de Economia Solidária e da UNISOL Brasil – Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários.

Recentemente foi criado o banco comunitário Justa Troca, que tem moeda própria e financia pequenos projetos de fortalecimento da economia local.

Assim, fica evidente a importância das políticas públicas para o início das atividades dos empreendimentos de EcoSol, da mesma forma que representa muito para as grandes empresas patronais.

A mídia mercantil costuma tratar o apoio governamental para a economia solidária como populismo e a montanha de dinheiro disponibilizada para o agronegócio anualmente, por exemplo, como ação necessária para o desenvolvimento. Fica a pergunta: desenvolvimento para quem? A que custo?

Arildo Lopes, integrante da Cooperativa Central de Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia (Uniforja), relata a experiência de aquisição e recuperação, por parte dos trabalhadores desde 2003, de uma empresa que se dedica à produção de peças para os setores de óleo e gás, assim como eólico, principalmente, e que decretou falência em Diadema/SP.

Os empréstimos do BNDES foram determinantes para a recuperação da empresa pelos trabalhadores, que mantiveram seus cerca de 300 postos de trabalho por meio da autogestão, ou seja, uma administração realizada por eles próprios.

Arildo afirma que essa experiência se trata do resultado de um processo que iniciou em 1997, com apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e CUT, que apontaram, em um congresso realizado em Praia Grande, que o modelo trabalho/renda pode perfeitamente ser uma alternativa ao modelo emprego/salário.

Ressalta que é de fundamental importância a formação para o trabalho associado, pois nas escolas não se ensina que é possível trabalhar coletivamente.

A experiência da Uniforja, com a recuperação de uma empresa pelos trabalhadores, evidencia a importância do governo federal ter linha de financiamento para que seja viabilizada a manutenção de postos de trabalho.

Ressalte-se que esta empresa disputa no mercado e comercializa com grandes empresas patronais, mas a sua lógica interna apoia-se na autogestão e não no modelo patronal.

Guilherme Prado é membro da coordenação da Rede Livres de Produção e Consumidores Conscientes, com sede em Santos, integrada por dez famílias de agricultores familiares organizados em duas associações, 170 famílias de consumidores e cinco entregadores denominados ecobikers, além de seis pessoas que trabalham na gestão da rede.

Prado afirma que uma das propostas do Livres é a criação de um pensamento crítico quanto ao consumo, com a organização de grupos de compras em uma rede, para que os agricultores familiares possam se programar para a produção de orgânicos.

Se é verdade que a produção define o consumo, também é verdade que o consumo direciona a produção, enfatiza. O termo Livres representa uma rede que não consome agrotóxicos ou existe exploração de mão de obra.

Atualmente, também proporciona a conexão de pessoas que prestam e adquirem serviços com princípios e valores que vão além das transações mercantis, pois se fundamentam também na reciprocidade.

Relata, ainda, que a Rede Livres não dependeu de políticas públicas para a sua organização, mas que são fundamentais para a consolidação dos empreendimentos econômico solidários, principalmente no que se refere ao financiamento e assessoramento técnico e organizacional.

Conclui que é necessário mudar o sistema agroalimentar dominante para que não haja uma profusão de pandemias como a do coronavírus. Deve-se expandir a agroecologia, o cooperativismo e haver um sistema de fiscalização e orientação sanitária com controle social. O objetivo é que ao longo do tempo a economia solidária seja o sistema hegemônico.

Adolfo Homma, membro da Cooperativa Central do ABC, Grande São Paulo (COOPCENT), cooperativa de segundo grau integrada por cinco cooperativas de primeiro grau e duas associações com 178 catadoras e catadores no total.

Ele afirma que, neste universo, sem as políticas públicas criadas nos governos Lula e Dilma, que proporcionaram a aquisição de galpões, aquisição de equipamentos com adoção de tecnologias e caminhões, a situação estaria ainda mais difícil, pois esses trabalhadores estariam realizando as suas atividades de forma isolada ou nos lixões.

A gestão de cada empreendimento e da COOPCENT se dá pela democracia direta por meio das assembleias e as presidências são ocupadas por mulheres. Todo o processo é autogestionário, não há patrões ou empregados. A distribuição dos resultados econômicos se dá de forma transparente, em assembleia, por hora trabalhada.

Demonstra-se o volume total produzido, quanto significa em dinheiro e o total de horas trabalhadas por todos. Cada um ganha o valor correspondente pelo trabalho realizado. A transparência é a base do processo democrático.

Adolfo Homma explica que toda a comercialização se dá em rede, ou seja, a COOPCENT vende os produtos para os compradores e recebe o dinheiro. Independentemente da data do recebimento, a cooperativa de segundo grau repassa imediatamente após as vendas o dinheiro para a cooperativas de primeiro grau.

Esse procedimento é possível pelo fato de a COOPCENT ter um capital de giro de R$ 260 mil. Assim, os catadores não esperam pelo pagamento após a entrega do material. Uma importante característica desses empreendimentos é a ajuda mútua quando há dificuldades. Esse aspecto representa a solidariedade em forma de reciprocidade assimilada à gestão, fenômeno que não existe nas empresas patronais.

Adolfo ressalta que não adianta ter governo municipal considerado de esquerda se não há gestores competentes para aplicar a legislação, que determina que as prefeituras devem contratar os serviços das cooperativas.

A COOPCENT acionou o Ministério Público do Trabalho (federal) e o Ministério Público do Meio Ambiente (estadual) para fazer com que a legislação fosse cumprida. Os catadores sequer eram ouvidos pelas prefeituras, agora são respeitados.

Afirma que os integrantes dos empreendimentos econômico solidários têm o vício de esperar que as políticas públicas sejam implantadas e não lutam por elas com fundamentação nos benefícios que a EcoSol pode gerar para a sociedade.

No caso dos catadores, há prestação de serviços ao município com o recolhimento dos resíduos sólidos. Na medida em que as cooperativas fazem esse trabalho, devem ser remuneradas pelo poder público. O respaldo é dado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos no artigo 36, a Lei Nacional de Saneamento e a Lei 8666 de contratação do serviço público.

Instrumental jurídico existe, falta ao gestor público vontade política. A realidade é que pouquíssimas prefeituras contrataram as cooperativas de catadores.

Adolfo Homma reflete sobre os motivos que levam o gestor público a não contratar as cooperativas de catadores de resíduos sólidos:

Gestor público desconhece, ignora ou não concorda com a legislação vigente; tem uma concepção de sociedade que marginaliza e discrimina a pobreza, de vítima o catador passa a ser culpado por sua condição social ou tem outras prioridades.

No entanto, afirma, não se pode generalizar o comportamento dos gestores públicos. Há aqueles que se colocam de fato ao lado dos empreendimentos e seguem a lógica do fortalecimento da economia solidária.

Contudo, há gestores como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que questiona a Lei de Resíduos Sólidos por seguir o receituário neoliberal e estabelece pactos com grandes empresas, que podem fazer desaparecer milhares de postos de trabalho, com a implantação de incineradoras ou viabilização de empresas com alto nível de tecnologia.

O objetivo do movimento de economia solidária é acabar com a miséria por meio da autogestão, do empoderamento das comunidades, dos trabalhadores e trabalhadoras. Para isso, deve lutar por políticas públicas de fortalecimento da economia solidária junto a todas as esferas do poder executivo e se articular com os setores progressistas do legislativo e aqueles do judiciário que são sensíveis aos trabalhadores.

Há necessidade de ressaltar que a ausência de políticas públicas também é uma política e deve ser combatida. No Congresso Nacional há, atualmente, um projeto de implantação de políticas públicas de fortalecimento da EcoSol que não avança, assim como existe outro que cria uma outra lei para substituir a de 1971, que rege o cooperativismo e que se encontra na mesma situação.

No estado de São Paulo, em 2012, foi aprovado na Assembleia Legislativa o marco legal da EcoSol e nenhum governo desde aquele ano a sancionou e, consequentemente, não a operacionalizou.

É importante ressaltar que a EcoSol não integra o chamado terceiro setor. As cooperativas, associações e grupos informais de trabalhadores associados que geram renda não são organizações não governamentais, são empreendimentos econômico solidários.

O movimento de EcoSol luta pela construção de uma outra economia em escala nacional a partir de experiências locais e não por ações pontuais que minimizem a miséria, mas a mantenha.

Por isso, essa luta deve ser por políticas públicas que coloquem em relação direta o Estado, princípio da redistribuição da economia e os empreendimentos autogestionários, integrantes do princípio reciprocidade da economia, sem que haja intermediário do terceiro setor, ou seja as ONGs. 

Assim, as relações de trabalho não se limitam a patrão e empregado dentro de uma empresa ou indústria. Há uma outra forma de relação que pode gerar trabalho e renda, promover dignidade, melhorar a qualidade de vida das populações pobres e elevar a autoestima.

Os empreendimentos de economia solidária devem lutar por políticas públicas que os viabilizem e fortaleçam. Afinal, os ricos já têm recursos financeiros acumulados por meio do mercado financeiro e/ou do esforço cotidiano dos trabalhadores. Assim, por isso, não precisam de políticas públicas de inclusão socioeconômica.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista