Foto: Bete Nagô

Semanas atrás, navegando em um site de rede social, vi um vídeo do amanhecer de Santos, a praia vazia, o barulho do vento. De um lado, o sol nascente. De outro, a lua cheia se pondo vagarosamente.

O vídeo me transportou para uma madrugada do início deste ano, em que vi o nascer do sol pela última vez. Era março, se não me engano. Eu havia ido sozinho a uma festa no Porto Circense, onde meu grande amigo Stéfanis Caiaffo, que voltara de uma viagem pela América Latina, discotecaria.

Após horas chacoalhando o esqueleto ao som de pedradas latino-americanas, fui embora acompanhado de minha querida amiga Bete Nagô, fotógrafa e ativista feminista do movimento negro. Caminhamos juntos até a orla, nos sentamos às mesinhas dos quiosques do Canal 5 e ficamos batendo papo, esperando pelos raios solares que em pouco tempo iluminariam a areia cinzenta, dando início a um novo dia.

Daquela vez, em que o sol também despertou antes que a lua tivesse ido dormir, senti vontade de pôr os pés na água. Fui e não percebi que Bete havia me fotografado.

Neste mês, numa homenagem por meu aniversário, ela postou uma das fotos em seu canal do Instagram. Gostei muito de recordar aquele momento fixado pelo olhar em preto e branco de Bete.

Na foto, um homem de meia idade, com seus cabelos curtos, calça jeans que parece querer cair de sua cintura, camiseta larga como suas costas, e as panturrilhas de fora, olha para o mar. Sua sombra ofusca um filete de onda que toca a praia. Outra onda, tímida, arrebenta deixando um rastro de espuma branca, mas a cabeça do homem está voltada para o lado oposto.

Em que ele estaria pensando enquanto admirava a imensidão do oceano? Talvez estivesse agradecendo pelo nascer do sol, pela lua linda, pela madrugada divertida. Talvez se sentisse fraturado, porque madrugadas como aquela costumavam ser partilhadas com sua amada companheira que, por estar doente, ficara sem ânimo para esse tipo de divertimento.

Pode ser que estivesse buscando razões para seguir adiante ou que apenas balançasse embriagado ao ritmo das ondas. Pensava em algo? No medo avassalador que o consumia? Aproveitava o momento? Não tenho como saber. As sensações daquele dia me escapam por completo. A verdade é que passei uns bons meses anestesiado, fugindo do sofrimento que me causava o adoecimento de Lia. Evidentemente, não me orgulho disso, mas também não me culpo.    

Ao rever a foto, ouço tocar em minha cabeça a canção de Gilberto Gil e João Donato cujos versos dizem assim: “beira do mar, lugar comum, começo do caminhar, pra beira de outro lugar. Beira do mar, todo mar é um, começo do caminhar, pra dentro do fundo azul”.

Nas imagens sépia do videoclipe da canção, Gil desfila pela praia de peito nu, entoando lindamente sua oração praieira e tocando seu violão. Penso em sua definição do ser litorâneo, esse sujeito que se entrega à transcendência, à impermanência, e conhece sua pequenez.

“Lugar Comum”, para mim, fala dessa dimensão mística do mar. O mar como travessia. O mar como uma espécie de campo de treino para quando não estivermos mais aqui. Aquele homem da foto, com seu pesar obtuso, sabia que dentro de pouco tempo morreria ao lado de sua companheira. E que teria de seguir vivo depois disso. 

Dez anos atrás, quando decidimos nos mudar de São Paulo para o litoral, sem planejamento prévio, alguns amigos próximos nos disseram que estávamos loucos. Hoje, quando vejo meus filhos surfando, e penso no quanto Lia aproveitou seu quintal marítimo, tenho certeza que esse foi nosso maior acerto. Porque eu – como ela era – sou das águas.

Embora menino nascido no interior, recuso qualquer solidez, qualquer raiz profunda, qualquer apego às vastas plantações de uva ou morango e odeio o culto ao trabalho. Não há em minha parede nenhum quadro que evoque Itabira, porque Jundiaí não me dói. Pelo contrário. Gosto mesmo é desse amplo horizonte, de admirar o cinema transcendental do Atlântico, imaginando-me um marinheiro que singra mares com sua alma sem âncora ou necessidade de atracar. Esse desejo de peregrinar, de me aventurar sem destino, de aceitar o imprevisível foi uma das heranças de Lia para mim, ela a mais linda andarilha que conheci.

Em seus últimos meses de vida, suas viagens passaram a ser interiores, e eram vivenciadas numa rotina que envolvia caminhar todos os dias à beira-mar, se exercitar com tai chi chuan, e meditar, seguindo ensinamentos do taoismo. Não raro, depois de realizar seu ritual matinal, que devolvia a ela a capacidade de respirar, me falava da felicidade que sentia por viver mais um dia.

O grande mestre zen vietnamita Thich Nhat Hanh explica que a convivência cotidiana com a morte pode nos mover a um estado de equanimidade e liberdade, a uma forma de paz. Vi isso ocorrer. Eu, porém, estava vibrando em outra frequência, lidando com a urgência do mundo como ele é. Mas quando me desligava do cotidiano e me permitia acompanhá-la em sua viagem pela praia, partilhando passos no mar, conseguia me conectar a seu desprendimento e sentia uma enorme paz interior.

Meu convívio íntimo com seu processo de ganho de consciência ensinou-me que “atenção”, “presença” e “celebração do amor” devem ser atitudes priorizadas em qualquer momento de nossas vidas. Por mais clichê que isso possa parecer, esse é o verdadeiro “sal do senhor” e se encontra ao alcance de cada um de nós. Digo isso sem qualquer pretensão de certeza. São muitas as dúvidas que me acompanham. Nessas horas, porém, recorro justamente à bússola mágica com a qual meu grande amor me presenteou. É ela que me aponta o caminho “pra dentro do fundo azul (…) pro mesmo lugar de onde tudo sai”, ao verdadeiro e inescapável “lugar comum”, esse paraíso oceânico onde um dia voltaremos a nos encontrar.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista