Foto: Divulgação/Sebrae

Este texto se propõe a estabelecer um diálogo franco com todas as pessoas que propõem diferentes modelos econômicos para o Brasil. Conclama a conjunção de todas as formas de economia, das tidas como as mais tradicionais, consistentes e estruturadas, até as mais insipientes, desde que tenham por foco a busca da justiça social e o respeito à Natureza. E desde que suas concepções de funcionamento não contradigam esses objetivos. A situação é suficientemente grave, devendo-se estar abertos a qualquer colaboração sincera.

A ideia de diálogo surgiu a partir do excelente artigo de Newton Rodrigues “O gestor de políticas públicas de economia solidária”, publicado no Folha Santista de 29-01-21. O ponto do referido artigo que me serve de partida está em seu 9º parágrafo, que coloco a seguir em itálico, especialmente a parte grifada por mim:

Sabe-se que são poucos os governos estaduais e municipais que adotam políticas públicas de apoio e fortalecimento da EcoSol, apesar de haver um agravamento da crise econômica com aumento do número de desempregados e desalentados, sem que haja perspectiva de recuperação da economia com base no modelo patrão/empregado.

Peço desculpas por publicar este texto somente agora. De início, pretendia fazer um comentário breve, mas, à medida que fui escrevendo, uma coisa puxou outra e minha própria necessidade de engendrar aspectos em mim alojados levou a comentário mais extenso.

Em primeiro lugar, os resultados do capitalismo praticado nas últimas décadas foram desastrosos, especialmente desde meados da década de 1970. Acabavam ali os que muitos chamam de os trinta anos “de ouro”, iniciados ao fim da Segunda Grande Guerra, período em que houve bom crescimento com razoável distribuição, sob estados de bem-estar social.

Trata-se hoje de um capitalismo financeiro improdutivo, exacerbado ao extremo a partir da crise financeira mundial de 2008, sem nenhuma trava contra o mercado que, com o Estado minimizado, atua a favor dos mais ricos, que olham apenas para o umbigo de sua classe.

Este mecanismo concentrador fica mais acintoso e desregrado à medida que a desigualdade aumenta e, nesta, estamos sempre entre os piores do mundo. Melhoramos um pouco a desigualdade nos primeiros 15 anos deste século (governos PT), quando chegamos a ficar lá pelo 10º lugar entre 190 países. Mas, agora, voltamos para a rabeira, junto com o Catar.

Dados da 19ª publicação anual de “Os grandes grupos”, do jornal Valor Econômico referentes a 2019 trazidos por Ladislau Dowbor, mostram que, no Brasil, o setor de Finanças registrou aumento no lucro líquido de 27,1% (em relação a 2018), enquanto tiveram redução os setores Comércio (- 6,8%), Indústria (-7,8%) e Serviços (-34,8%, inacreditáveis).

Estes dados são compatíveis com os de apropriação, pelos bancos, do lucro total dos quatro setores: passou de 37,7% em 2018 para 48,9% em 2019. Tal distorção na apropriação dos lucros pelo setor bancário vem ocorrendo há muitos anos. E não vi, também desta vez, os representantes dos três setores perdedores fazendo manifestações de desagravo e nem mesmo de desagrado.

Em 2012, quando Dilma colocou o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal para puxar os juros para baixo, também não haviam se juntado em defesa dela. Afinal, os comandantes dos quatro setores são da mesma classe e, assim, não brigam entre si.

Outro exemplo do umbigo que os une é o fura fila da tentativa de importar vacinas contra o Covid-19 para serem aplicadas, a preço de ouro, nas clínicas particulares. O agravante é que, à época da tentativa, a garantia de termos as vacinas do Butantan e da Fiocruz eram menores do que hoje; e nem mesmo de seringas e agulhas: quem tivesse dinheiro se salvaria, quem não tivesse…

Este ataque frontal à ética parecia ter sido descartado, dada a gritaria dos das classes baixas, a grande maioria. Mas hoje, com as dificuldades em importar insumos para vacinas da China, já há denúncias de tentativas vergonhosas de “carteiradas”.

Mas, no mesmo sentido, é a desgraça que se abate sobre os países mais pobres, sem condições econômico-financeiras de negociar com os laboratórios desenvolvedores das vacinas, ao mesmo tempo que os países mais ricos chegam a comprar bem mais do que vão necessitar. Diz-se que Israel, por exemplo, já há meses comprou pelo dobro do preço toda a vacina de que precisa. Não se vê nenhum movimento mundial pregando ética nessas negociações. A constituição de um fundo, com origem nos países ricos, para fornecimento de vacina aos países mais pobres, também não é viabilizado.

A atuação nociva do capitalismo vai além da questão da miséria e da desigualdade, escancaradas pelo Covid-19. Ele depreda a Natureza, tendo gerado um outro inimigo a combater, tão perigoso quanto o vírus: o aquecimento global.

Fica claro que algo bem diferente tem que surgir no lugar do capitalismo que aí está. Esta era a análise que fazia já na década de 1960, mesmo com menos discernimento e informações de que tenho hoje (e quanta gente o disse, com mais propriedade que eu e há séculos antes de mim).

Naquela ocasião já mostrava que o perfil de produção que a ditadura propunha para o Brasil não se acoplava ao perfil das necessidades, quando nestas estão incluídas as dos mais pobres. E este desacoplamento acontece sempre que as decisões de investimento obedecem às exigências de um mercado que funciona mirando exclusivamente a demanda efetiva, dado que sem esta não há possibilidade de lucro.

A demanda efetiva é exercida, claro, pelos que concentram renda, riqueza, conhecimento: a alocação dos fatores de produção – os clássicos natureza, trabalho e capital – mais conhecimento tecnológico e gerencial, se dá combinando-os de modo que a natureza é degradada e os trabalhadores explorados. Ou seja, muitos vêm trabalhando muito para poucos, em processo secular de exploração, humana e da natureza.

Em segundo lugar, também está claro para mim que não temos condições políticas para fazer a troca desse capitalismo pelo socialismo, mesmo que pelo chamado “socialismo de mercado”, no tempo que gostaríamos.

No Brasil, a percepção política dos explorados está tão distorcida que parte significativa deles tem votado justamente nos que os exploram. E mesmo agora, depois de esbanjadas pelo governo atual tantas declarações e ações concretas, em especial as contra a vida, atingindo prioritariamente os mais pobres, parcela significativa destes insiste no apoio a seus algozes.

Como trazê-los para o lado da razão e da ciência se os sindicatos minguaram, os movimentos sociais estão fragilizados, os conselhos que os representavam foram desarticulados e, exatamente por conta da classe dos poderosos, a grande imprensa não discute o essencial? Uni-los, com interesse esclarecido e decidido, a um projeto civilizatório é, assim, tarefa para muito tempo.

Em terceiro lugar, as condições de boa parte do povo brasileiro são de penúria total. Enquanto não se chega a um modelo diferente, o que fazer de modo a minorar o sofrimento de parcela tão grande, algo como 100 milhões de brasileiros (a seguir apresento dados que nos permitem concluir por este contingente, pavoroso e construído politicamente).

Em quarto lugar, como já me referi, há vários modelos, a maioria pretensos, de economia que propugnam por justiça social e respeito à Natureza, ou pelo menos as anunciam como objetivo.

Um deles, de que falo em primeiro lugar pela sua importância, é o da Economia Solidária. Não só pela contribuição direta na criação de postos de trabalho e de renda, mas igualmente pelo que representa de diferente na relação capital/trabalho e pela chama que se alimenta da igualdade.

E entre as ações desenvolvidas pelos empreendimentos de economia solidária, há décadas no Brasil e há quase dois séculos no mundo, abre-se hoje a oportunidade para acelerar a autogestão, inclusive em empresas médias e, talvez, em grandes empresas.

A desgraça do fechamento de milhares de empresas, com o consumo de seus produtos reduzido pela desigualdade de muitas décadas que fere a renda da maioria, e intensificada pela pandemia, pode acabar sendo oportunidade de fazer crescer muito a economia solidária, se se conseguir instaurar mecanismos que viabilizem a autogestão nas empresas já fechadas ou em processo.

Nesse sentido, foco a Baixada Santista. A atuação das prefeituras + Condesb + Câmaras de Vereadores, sempre junto com o FESBS – Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista, poderia se dar propiciando que os trabalhadores as assumissem sob autogestão.

Os agentes públicos mencionados poderiam, entre outras coisas, a) mediar antigos patrões e empregados visando a autogestão, com os patrões liquidando suas dívidas trabalhistas com ativos de suas empresas, quando esgotadas as possibilidades de ressarcimento financeiro; b) fornecer renda básica aos que estavam nas empresas fechadas, dando-lhes fôlego e confiança no período de mediação e até a normalização da autogestão; c) perdoar impostos das empresas fechadas e/ou renegociá-los para pagamento a longo prazo; d) oferecer ajuda advocatícia quanto às dívidas da empresa, quanto ao modelo jurídico de autogestão a ser implantado e quanto à nova relação tributária;  e) criar um fundo municipal para aplicação nessas empresas (no programa da Rádio Brasil Atual Litoral de 12-01-21, Newton lembrou, quando fiz esta sugestão, que havia nos governos do PT linha do BNDES para financiar autogestão); f) priorizar estas empresas na compra de produtos rotineiramente usados pelas prefeituras; g) contratar parte do pessoal para trabalhar na prefeitura enquanto o processo de autogestão não se consolidar; h) oferecer cursos de  treinamento (sobre gestão e outros) etc.

Ajudaria muito se o governo federal e os governos estaduais criassem linhas para ajudar as prefeituras, semelhantes à do BNDES, referida acima. Mas não creio que as prefeituras possam contar com o governo federal atual, pois este está agarrado à austeridade e ao mercado. Quanto aos estados, talvez alguns se disponham a ajudá-las.

A Ecosol é um dos instrumentos importantes para geração de emprego e renda e, fundamental, se dá sob concepção fora da relação patrão/empregado. E não nasceu hoje, que o diga o Professor Paul Singer.

Trata-se de um sistema econômico bem definido e bem difundido no Brasil e em muitos outros países que, mesmo muito antes de se tornar hegemônico, pode contribuir bastante para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores brasileiros. A referência à falta de hegemonia é para chamar a atenção para as dificuldades decorrentes do funcionamento de um sistema com princípios socialistas dentro de um regime capitalista, este sim hegemônico. Mas, mesmo assim, há consistência na Ecosol, inclusive com corpo teórico bem desenvolvido e em evolução.

Resgato, neste ponto, dois parágrafos do artigo do Newton Rodrigues, absolutamente essenciais quanto à proposta de engajamento do setor público para viabilizar a parceria de autogestão nesta fase tão difícil para os trabalhadores.

“Dessa forma, o gestor de políticas públicas de EcoSol deverá ter o perfil de estimular e apoiar a participação para garantir a construção das redes sociotécnicas que viabilizarão os projetos de apoio e fortalecimento dos grupos de EcoSol.

Assim, não deve seguir a lógica do governo e tentar aparelhar os empreendimentos econômico-solidários como se fossem realizações governamentais e muito menos se comportar como se os grupos fossem seus, resultado das suas ações e ideias”.

Este destaque é para não repetir aqui todas as considerações do artigo que, aliás, deve ser todo ele objeto de reflexão por parte dos gestores públicos envolvidos, mesmo daqueles funcionários que não estejam voltados para a Economia Solidária.

Há ainda outras “economias” – com aspas para que se atente não se tratar de sistemas bem definidos, ou que ainda estão em processos embrionários, exploratórios quanto à definição -. É o caso das “economias” criativa, feminista, circular, popular, colaborativa, ecológica, da dádiva, da comunhão etc, algumas delas expressando apenas boas intenções.

Aliás, conheço muito pouco sobre cada uma e o que falar sobre elas tem o sentido de externar minhas preocupações com a possibilidade de não combaterem a desigualdade nem respeitar a Natureza. Me perdoem seus defensores se eu cometer alguma impropriedade.

Por exemplo, não vejo a “economia” criativa funcionando como um sistema. Tem por base a criatividade que, em si, é valiosa. De fato, produzir algo de modo diferente e com mais eficiência e eficácia do que o feito tradicionalmente é bom em princípio. Mas a contribuição da criatividade para uma sociedade melhor vai depender das consequências de sua aplicação.

Por exemplo, a criatividade que melhore a eficiência da produção do sofisticado, por exemplo iates e jatinhos, para uma minoria, não estaria contribuindo para uma sociedade mais justa, pois estes produtos, num país pobre e desigual como o nosso, é supérfluo para a maioria.

Nem se fale se imaginarmos nossos cérebros fervendo de criatividade na produção de armas. Não é uma criatividade benvinda, se valorizamos a igualdade e a paz.

Já a criatividade que melhore a produtividade da agricultura familiar desde o plantio até a colheita e distribuição de alimentos orgânicos é muito bem-vinda. Assim como a que fosse aplicada na melhoria da relação professor-aluno naquele ensino que tenha por base a cidadania. Aquelas “economias” que, mesmo não se constituindo em um “sistema”, contribuam para um mundo melhor para todos, são bem acolhidas.

Não posso meter o bedelho, ainda mais com pouca ou nenhuma propriedade, em tantas concepções de economia sem que diga do meu entendimento sobre a Economia de Francisco e Clara. Já ouvi críticas de que ela não é suportada por uma teoria pronta e acabada. E é verdade, inclusive porque ela foi lançada há apenas 20 meses. Mas ela pode trazer um bem enorme à humanidade e à natureza mesmo sem uma nova teoria, apenas aplicando com bom senso as teorias que estão aí.

Penso que ela tem muito para lutar por melhoras efetivas das condições de vida dos 100 milhões de habitantes com os instrumentos de economia que estão aí, como mostro mais abaixo, embora seja uma luta difícil com as condições políticas que vivemos.

Mas estas condições políticas impõem as mesmas dificuldades, ou talvez até mais, às outras formas de economia propostas. Não dá para assistir ao sofrimento de parcela tão grande da população brasileira e ficar por tempo indeterminado em busca de uma “nova” economia. Ou, mesmo, nos restringirmos à mais consistente, a Economia Solidária que, com todas as qualidades já enfatizadas, ainda não tem como dar conta, sozinha, de todo o desemprego, miséria e pobreza que nos assola.  

De concreto mesmo, na Economia de Francisco e Clara, há os princípios de que é imprescindível um novo funcionamento da economia, que combata a desigualdade e tenha apreço por todos os seres da Natureza.  

Quer se trate da economia que aí está ou de outra que seja viável politicamente e que reduza urgentemente o sofrimento de tantos. Embora saibamos que tais princípios só serão respeitados integralmente sob socialismo com liberdade (pleonasmo, mas não custa enfatizar a liberdade). Entre os documentos do Papa Francisco, o que melhor justifica a necessidade de mudança para um funcionamento econômico que tenha por fundamentos os dois princípios enunciados, é a Encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas), de maio/2015, sobre o cuidado da casa comum.

Em quinto lugar, mesmo com um governo com concepções opostas ao do atual e com apoio popular; e mesmo que todas as outras “economias” bem-intencionadas se juntassem a esse esforço, sabemos que levaríamos muitos anos para levar a todos os 100 milhões de brasileiros tão sofridos um pouco mais de bem estar, dado o tamanho da pobreza e miséria resultante da secular desigualdade social (1). Mais não fosse, pela resiliência do capitalismo frente a tudo o que o ameace.

Tanto a Ecosol como as outras “economias” têm que, num certo momento de seu funcionamento, “concorrer” sob os grilhões do mercado. Temos confiança em que essas economias subversivas, num prazo que não se pode estimar, mas que penso ser longo, acabarão por vencer, pois sua racionalidade e seu destino é o reencontro com a Natureza e o encontro com a Igualdade.

Mas, sabemos, o processo é muito lento sob a “democracia” tão distorcida pela desigualdade de poder em todos os sentidos (renda, riqueza, conhecimento etc), e não vislumbro outra possibilidade que não o caminho democrático.

Em sexto lugar, a conclusão é que, ao mesmo tempo em que se fortalece a Ecosol e as outras “economias” que focam a igualdade, devemos concentrar nossos esforços políticos para mudar radicalmente a política econômica que aí está, pois a troca do regime de austeridade e privilégio ao mercado por outro de ampliação das políticas de Estado é o modo mais rápido de voltar a crescer e gerar emprego e renda, mesmo sob o capitalismo.

O Brasil está com grande capacidade ociosa. Em termos do fator trabalho, temos 14 milhões de desempregados e outros 6 milhões de desalentados (desempregados que nem ânimo têm para procurar emprego). Apenas pouco mais de trinta por cento da PEA-população economicamente ativa tem carteira assinada (parte da qual como trabalhadores intermitentes, temporários, terceirizados e “empreendedores” solitários – “PJ’s”, categorias que por vezes se assemelham a informais).

Ademais, há dezenas de milhões de informais: eram 38 milhões em dez/20, antes da pandemia. Em termos do fator capital, as empresas, sem contar as fechadas, estão com grande ociosidade (na casa das dezenas, 30%, 40%, 50%) dependendo do setor; o capital financeiro é abundante (há setores da economia voltados para produtos sofisticados que estão de vento em popa, ou seja, há consumidores abastados, com bastante dinheiro aplicado); e a agricultura vai “muito bem”, com produtividade crescente e fronteiras expandíveis e exportando muito.

O fator natureza é abundante, inclusive água, embora a prudência recomende ficar bem abaixo dos limites confortáveis para a Terra. O fator tecnologia tem sofrido com a austeridade, mas ainda assim é suficiente para as coisas básicas.

Portanto, a não ser uma preocupação maior com a energia, cuja disponibilidade será testada conforme retorne o crescimento, temos tudo para voltar a crescer. E mesmo a preocupação com a energia precisa ser reavaliada, pois vem crescendo muito a oferta de energia limpa do Sol e do vento.

O que falta para juntar os agentes tão ávidos para produzir? Falta o que só teremos com mudanças políticas drásticas: um governo que junte todas essas pontas tão necessitadas e ávidas para se colocar em ação. E isso tem que começar com o governo invertendo o discurso de que “o Brasil está quebrado” e irrigando de crédito os fatores apontados.

Isto é defendido desde as primeiras décadas do século passado por Keynes, um dos mais importantes economistas da história. E a adesão a esta tese veio num crescendo, sendo hoje defendida por forte corrente de economistas, alguns deles ganhadores do Nobel.

Mas não precisa ser economista para entender. Dois exemplos, a seguir. Um motor de avião tem suas peças ajustadas milimetricamente, mas sem óleo que as lubrifique por igual haverá atrito que vai travá-lo. Nenhum mecânico aceitaria ordem do diretor financeiro da empresa para economizar, “cortar” óleo…

O outro é sobre o funcionamento do cérebro, que se dá ligando os neurônios em meio líquido. Esta ligação é feita pelo líquor. Dependendo do grau de desidratação, uma pessoa pode ficar completamente enlouquecida, ou mesmo morrer por falta de ligar um neurônio a outro, pois os vários órgãos do corpo ou deixarão de funcionar ou o farão sem coordenação alguma.

No caso da economia com grande capacidade ociosa em todos os setores, como está a brasileira, se dá o mesmo. A hidratação, no caso ligar as pontas, é indispensável. A fonte destes recursos (líquor) está numa relação de débitos e créditos entre o Banco Central e o Tesouro Nacional (popular e erroneamente conhecida como “rodar a maquininha” da Casa da Moeda).

A dívida pública gerada nestes termos é muito diferente da contraída por venda de títulos ao setor financeiro a empresas de caixa alta e a aplicadores pessoais, pois os detentores destes títulos podem exigir judicialmente resgates, correção monetária, juros e multas, enquanto a relação BC/TN não gera este direito. Assim, é uma impropriedade juntar os percentuais desses dois tipos de “dívida” tão diferentes e relacionar a soma deles com o PIB.

Há outras fontes, como empréstimo compulsório sobre os muito ricos, utilização de parte das reservas externas…mas vamos ficar apenas no sistema tributário.

Hoje, no Brasil, os muito pobres pagam de impostos cerca de 40% de seus ganhos e os muito ricos menos de 10%. O jogo político é de tal ordem influenciado pelo poder econômico que esse disparate existe desde sempre.

O prof. Eduardo Fagnani, da Unicamp, coordenou um dos estudos mais completos sobre reforma tributária. Fagnani demonstra ser possível aumentar as receitas tributárias sobre renda, patrimônio e transações financeiras dos mais ricos em R$ 357 bilhões/ano, sem lhes afetar em nada a qualidade de vida (2).

Alguns partidos acolheram as propostas do grupo de Fagnani; uma das lideranças é a deputada federal Jandira Feghali/PCdoB-RJ.

A mudança drástica de um regime de austeridade com mercado privilegiado para outro com Estado participativo, controlado socialmente, e mercado controlado, permite reformas importantes que melhorariam muito o desempenho da economia e o bem-estar geral, principalmente quando a capacidade ociosa estiver normalizada.

Aí vão algumas ideias, além da reforma tributária já comentada: a) substituir a EC 95 por instrumento que priorize as necessidades sociais (porquê não uma Lei de Responsabilidade Social, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal existente já há décadas?); b) rever reforma trabalhista (terceirização, trabalho intermitente, temporário e PJ, eliminar sucumbência para o trabalhador etc); c) restabelecer política de recuperação do SM que tenha por meta o Artigo 7º.-IV da Constituição Federal [conforme cálculo que o DIEESE faz mensalmente, o SM necessário para cumprir a Constituição 88, em dez/20 deveria ter sido de R$ 5.304,00, contra o “legal” de R$ 1045,00 (este apenas 19,7% daquele)]; d) fazer com que a política de câmbio leve em conta, além do equilíbrio das contas externas, o movimento de capitais e o poder aquisitivo dos salários; e) restabelecer a política de estoques reguladores, que equilibra produtores e consumidores, evitando grandes oscilações de preço; f) estabelecer renda básica universal; g) restabelecer a política habitacional, para acabar com o déficit de moradias; h) acelerar os programas de saneamento stritu sensu e água potável, inclusive cisternas…

Enfim, o foco político deve ser levar ao poder um governo que priorize a elaboração de um projeto de nação que objetive crescer, primeiro, com redução importante da desigualdade social; depois, com o resgate da dívida social, conforme vimos na nota 1. Este processo implica a redução da desigualdade de todos os tipos. Ou, conforme Amartya Sen, prêmio nobel de economia 1998, a desigualdade de Liberdade Sustantiva, que só é garantida se houver igualdade de oportunidades que, por sua vez, só é conseguida se houver igualdade dos meios necessários para que cada pessoa possa dispor de um leque de projetos de vida para escolher e que possa desenvolver.

É claro que minha proposta não têm a pretensão de acabar com a exploração, o que só ocorrerá quando todos da sociedade trabalharem de modo a que o perfil de produção se acople perfeitamente ao perfil das necessidades o que, em tese, o capitalismo só viabilizaria com igualdade absoluta de liberdade substantiva. Ou seja, nunca, dado o espírito competitivo que o motiva. Mas penso que os 100 milhões de brasileiros que vivem intenso sofrimento desde que nasceram também não podem ficar esperando pelo fim do capitalismo.

O grau de injustiça é tão elevado que há muito o que cada “tipo” de economia que busque o bem-viver geral pode fazer para reduzi-lo, antes que se chegue ao ponto que exija rupturas. Poderão fazer mais ainda, se em conjunto.

(1)Isto, sem falar no resgate da dívida social, acumulada a cada dia de desigualdade desde o descobrimento. A igualdade social no funcionamento da economia, por si só não resgata a dívida social. Ou seja, mesmo que tivéssemos daqui em diante um perfil de produção totalmente acoplado ao perfil das necessidades, se este acoplamento é a justiça social, a dívida social deixaria de crescer por conta da desigualdade zerada, mas, importante, continuaria a crescer por conta da remuneração referente à dívida não paga. Para resgatá-la mesmo é preciso avançar sobre a desigualdade de riqueza. Aliás, a riqueza é a contrapartida da dívida social. Presumo que, enquanto houver desigualdade de riqueza haverá dívida social, a menos das considerações sobre a legitimidade ou não dos esforços maior ou menor dos agentes sociais. Impossível de calcular essa dívida social, a não ser com grandes simplificações metodológicas. Coloquei estas observações aqui, como nota de rodapé, para amenizar a leitura do texto. No entanto, elas são muito importantes para se entender as consequências da desigualdade social.

(2)Ver artigo “Reforma Tributária para enfrentar a desigualdade”, por Eduardo Fagnani, em “Brasil: Estado social contra a barbárie” – Jorge Abrahão de Castro e Marcio   Pochmann (organizadores). – São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista