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O movimento de economia solidária (EcoSol) se organiza em três segmentos desde a criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária em 2003. Há os representantes dos empreendimentos econômico-solidários, os gestores de políticas públicas e profissionais de apoio, que comumente integram as universidades ou são voluntários.

Os termos empreendimento, gestor e outros, adotados pelo movimento de EcoSol, como banco (comunitário) e incubação, por exemplo, têm origem no sistema capitalista. Esse fenômeno ocorre pelo fato de a EcoSol ser construída no seio do sistema hegemônico.

Claudio Nascimento, no livro “Paul Singer: democracia, economia e autogestão”, reproduz como o professor entendia a relação da EcoSol com o capitalismo e a construção de um outro sistema, fundamentado na democracia, autogestão dos meios de produção, reciprocidade, igualdade social e respeito ao meio ambiente:

“A essência do socialismo, enquanto modo de produção, é a organização democrática de produção e consumo, em que produtores e consumidores, livremente associados, repartem de maneira igualitária os ônus e os ganhos do trabalho e da inversão, os deveres e os direitos enquanto membros de cooperativas de produção e/ou consumidores (…) A transferência do controle dos meios de produção aos trabalhadores, para ser autêntico, não pode ser decretado de cima para baixo, mas tem que ser conquistado de baixo para cima, dentro do capitalismo, o que implica em uma longa e verdadeira revolução cultural”.

A EcoSol é uma forma de organização da economia com base na autogestão e cooperação representada por inserções no sistema econômico hegemônico. Pelo fato de os militantes e estudiosos da EcoSol viverem no capitalismo, adaptam termos deste sistema para se referir a organizações da EcoSol.

A mudança dos termos pode ser que ocorra com o aumento da ocupação de espaço na sociedade pelos empreendimentos econômico-solidários e a realização de um esforço teórico para se dar o nome correto às formas específicas de sua organização. Talvez somente a adjetivação dos termos seja suficiente para diferir o que é EcoSol de empresas capitalistas.

Gestor é um desses termos, como afirmado, mas gestor de políticas públicas de EcoSol deve ser entendido como um servidor público com um perfil adequado às exigências dessa forma de organização da economia, visto que o movimento luta pela garantia de políticas junto ao Estado capitalista, para que atenda também àquelas pessoas que querem, de forma associada, produzir, prestar serviços, consumir, poupar.

O fato de a EcoSol ter apoio governamental não deve ser confundido com o distanciamento dos empreendimentos econômico-solidários em relação à autogestão. O papel do Estado é redistribuir os recursos que arrecada com impostos, o que não deve ser confundido com interferência na gestão dos empreendimentos dos trabalhadores.

Sabe-se que são poucos os governos estaduais e municipais que adotam políticas públicas de apoio e fortalecimento da EcoSol, apesar de haver um agravamento da crise econômica com aumento do número de desempregados e desalentados, sem que haja perspectiva de recuperação da economia com base no modelo patrão/empregado.

Além disso, os capitalistas impõem aos trabalhadores, por meio do Estado privatizado, a desregulamentação das leis trabalhistas para manter ou aumentar a parte que retiram para si do trabalho alheio.

Porém, há locais em que os governos cedem às pressões do movimento social para implantação de políticas públicas de EcoSol, ou o próprio governo tem o compromisso político de fazê-lo.

Nesses casos há um ator social de grande importância no processo de elaboração e operacionalização daquelas políticas. Trata-se do gestor, que será considerado, na presente abordagem, o secretário ou diretor de departamento em que há um setor que responde pela EcoSol no organograma da instituição pública.

Os professores e pesquisadores universitários são considerados como profissionais de apoio. No entanto, há aqueles que também atuam como gestores, algumas vezes eventualmente e em outras de forma continuada.

A questão que se busca responder é: qual deve ser o perfil do gestor público de políticas públicas de EcoSol, considerando que a sua atuação se dará com grupos que devem ser autogestionários e representam expressiva diversidade de segmentos?

Em um mesmo território como a Baixada Santista pode-se encontrar cooperativas de catadores de materiais recicláveis e de professores, indígenas que adotaram o turismo de base comunitária, prestadoras de serviços como a Lavanderia 8 de Março, artesãos, pescadores artesanais, redes de produção e comercialização de agricultores familiares, usuários do serviço de saúde mental, egressos do sistema prisional e população em situação de rua.

O gestor deverá ter conhecimento de técnicas e características organizacionais das especificidades de cada segmento/grupo ou ter um perfil de atuação que garanta a construção de redes profissionais de apoio, considerando também que os grupos podem se apoiar mutuamente?

Para definição do perfil ideal do gestor de políticas públicas de EcoSol me apoiarei na sociologia da inovação, referencial teórico criado pelos franceses Bruno Latour e Michel Callon na década de 80.

Esses pesquisadores concluíram que nenhuma inovação se impõe por suas qualidades próprias, ou seja, por ser considerada boa, é a rede sociotécnica que a viabiliza. Uma inovação pode ser um aspecto técnico ou organizacional adotado por cada grupo. Assim, nenhum projeto como ideia inicial é bom, É o conjunto de pessoas interessadas e mobilizadas em viabilizá-lo que o viabilizarão.

Comumente, a ideia inicial sofre mudanças com a adoção de propostas feitas pelas pessoas que integram a rede, na medida em que aumentam as adesões ao projeto. Assim, a ideia final, ou seja, o projeto que recebeu contribuições nas reuniões, por exemplo, ou em outras atividades coletivas, expressará as lógicas e os objetivos daqueles que integram a rede.

Enfim, a ideia inicial, que não poderia ser considerada boa, se torna boa com base nos engajamentos das pessoas que passam a integrar a rede sociotécnica que viabiliza o projeto.

Dessa forma, o gestor de políticas públicas de EcoSol deverá ter o perfil de estimular e apoiar a participação para garantir a construção das redes sociotécnicas que viabilizarão os projetos de apoio e fortalecimento dos grupos de EcoSol.

Assim, não deve seguir a lógica do governo e tentar aparelhar os empreendimentos econômico-solidários como se fossem realizações governamentais e muito menos se comportar como se os grupos fossem seus, resultado das suas ações e ideias.

Orientem sempre os gestores que usam termos como “meus agricultores”, “meus artesãos”, “meu estagiário”, “meu projeto” a abandonarem esse tipo de tratamento . Nesses casos, se não houver mudança de comportamento por parte do gestor, a tendência é tornar os grupos dependentes e acaba-se com a ideia de se construir inserções autogestionárias no seio do capitalismo. Enfim, não se constrói a EcoSol pelo fato de o gestor agir como um patrão.

É importante ressaltar que o processo de construção de redes sociotécnicas não é livre de controvérsias e disputas de ideias, principalmente se considerarmos que é comum o fato de os integrantes dos grupos terem histórias de vida e formações diferentes.

Cabe ao gestor acionar profissionais que atuam no campo das relações interpessoais para realizarem atividades que objetivem fortalecer a coesão social e o entendimento do jeito de ser de cada um. Gestores do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista (FESBS) já adotaram com sucesso a Terapia Comunitária, criada por Adalberto Barreto, e os Tipos Psicológicos de Jung.

Disputas políticas entre servidores públicos ou vereadores pela paternidade/maternidade de projetos de EcoSol também são nocivas à construção de uma outra economia.

A EcoSol, além da autogestão, tem como princípio a reciprocidade, ou seja, o apoio mútuo. A reciprocidade deve ser integral e estabelecida entre os integrantes dos grupos e dos governos com os grupos. Onde há disputas, ou seja, competição, reforça-se um princípio do capitalismo e não da EcoSol.

O socioeconomista francês Jean-Eudes Beuret, em seu livro “La conduite de la concertation” (“A condução da concertação”), se fundamenta na sociologia da inovação para indicar caminhos para a construção da concertação, processo que se apoia em um quadro em que diferentes atores sociais como gestores, vereadores, ambientalistas, integrantes de empreendimentos econômico-solidários diversos se colocam em acordo quando há interesses diferentes e que é preciso viabilizar projetos que possibilitem a gestão dos territórios e dos recursos que pertencem a todos.

A concertação aproxima os atores sociais e possibilita a construção coletiva de regras e de organizações, como a constituição e atuação de um Conselho Municipal de Economia Solidária, por exemplo.

A concertação é uma etapa posterior à negociação na dinâmica participativa. Assim, o gestor de EcoSol deve assumir o papel de facilitar/viabilizar a concertação que, mais que um resultado, trata-se de um processo.  

A concertação, no caso da EcoSol, é resultado da participação direta dos integrantes dos grupos para resolução dos seus problemas. O gestor é mais um ator social a participar, mas com a missão de viabilizar a construção da rede em torno de um projeto viável para todos os integrantes.

Assim, não se trata de um ator social que tem o papel de determinar o que será feito. O gestor não deve ser um “sabichão”, agir como se soubesse tudo e tivesse solução para todos os problemas. O que se espera de um gestor é que tenha capacidade de mobilizar profissionais das universidades, institutos de pesquisa, extensão, de empreendimentos econômico-solidários, de outros órgãos do poder público etc, para que integrem a rede sociotécnica para darem a sua contribuição. 

Beuret aborda o perfil ideal de um bom gestor para construção de redes sociotécnicas, que são as organizações, os espaços de atuação em reciprocidade que viabilizam projetos.

Afirma que é de fundamental importância saber favorecer um clima de cooperação entre os atores sociais, ter capacidade de ouvir, estabelecer as proximidades com outros setores do poder público, ampliar parcerias, dialogar com integrantes dos diferentes segmentos envolvidos no projeto, ter criatividade, engajamento pessoal e formação técnica.

Nesse caso, é recomendável que os conhecimentos técnicos sejam, preferencialmente, em associativismo e cooperativismo, pois é uma área do conhecimento comum a todos os empreendimentos.

Pode-se acrescentar a essas habilidades uma recomendação do sociólogo francês Edgar Morin que o gestor deve assumir: “Desenvolver a inteligência geral, que significa estimular ou instigar de forma interrogativa e orientá-la para os problemas fundamentais de nossa condição e de nossa época”.

Mesmo que o gestor não tenha a interpretação do Paul Singer de que as experiências de EcoSol podem ser inserções socialistas no seio do sistema capitalista e que os empreendimentos econômico-solidários devem somente cumprir o papel de geração de postos de trabalho e renda, ainda assim deve ter esse perfil.

É importante ressaltar que o gestor não deve dirigir os empreendimentos econômico-solidários, mas estimular a autogestão. A mobilização dessas habilidades para que determinado profissional seja um bom gestor define a sua competência, que deve ser construída ao longo do tempo.

A construção da EcoSol não é um processo fácil, pois se trata de uma migração dos trabalhadores de uma relação de competição e de divisão clássica do trabalho do sistema capitalista para relações de cooperação, em que todos devem estar engajados na gestão do empreendimento coletivo.

Dessa forma, há casos de gestores de EcoSol que frente ao desafio do trabalho que deveriam desenvolver afirmam: “É necessário mudar o conceito de EcoSol e considerar os empreendimentos de gestão familiar como integrantes dessa forma de organização da economia”.

Assim, comumente, o seu desejo é que o trabalho que realiza deve se resumir a organizar feiras de empreendimentos familiares. Nesses casos, deve-se compreender que os empreendimentos de gestão familiar podem adotar práticas vinculadas à EcoSol, como compra conjunta, gestão da feira, entregas em domicílio dos produtos de todos e criação de fundo rotativo solidário para investimentos nos próprios empreendimentos.

Para isso, o gestor deve envidar esforços para disponibilizar atividades de formação, sendo de fundamental importância realizar articulações com profissionais e militantes do movimento de EcoSol com experiência para ministrar cursos, palestras, rodas de conversa e orientar excursões técnicas.

Não se trata, portanto, de mudar o conceito de economia solidária para incluir os empreendimentos de gestão familiar, mas de inserir o germe da EcoSol na dinâmica das relações desses empreendimentos.

O gestor tem que trabalhar em equipe, não pode ser uma pessoa que atua sozinha com EcoSol em determinado município, por exemplo. Caso a prefeitura não contrate outros profissionais, se torna incontornável o estabelecimento de parcerias para atender às diferentes demandas dos empreendimentos econômico-solidários.

Para isso, a participação dos gestores nos fóruns regionais e estaduais de EcoSol assume grande importância. O voluntariado, representado por pesquisadores, extensionistas, integrantes de outros empreendimentos e professores nos fóruns, possibilita a criação de um espaço de cooperação que pode minimizar a falta de profissionais em alguns municípios.

Um bom exemplo de participação de voluntários está nas ações do FESBS em 2020. Mesmo em um quadro de afastamento social foram realizadas 82 atividades, sendo: um ato presencial em parceria com outras organizações; 24 lives organizadas pelo FESBS; 16 lives com participantes do FESBS a convite de outras organizações; 11 lives organizadas pelo FESBS em parceria com outras organizações; 11 lives com candidatos às câmaras municipais e prefeituras da Baixada Santista; cinco moções de repúdio ou apoio; cinco ações junto a prefeituras para implantação do marco legal da economia solidária; duas campanhas para arrecadação de dinheiro e alimentos para comunidades em estado de vulnerabilidade social.

Os gestores que participaram dessas atividades e estimularam os integrantes de empreendimentos econômico-solidários dos municípios a participarem, certamente, tiveram expressivo aprendizado quanto ao conteúdo das atividades e metodologia de construção de redes sociotécnicas, pois para a realização de cada uma das ações foi necessária a criação de uma rede específica para a sua viabilização.

O ano de 2021 inicia com prefeitos e vereadores eleitos no final de 2020. O movimento de economia solidária continuará a lutar pela implantação de políticas públicas de EcoSol e que tenha gestores dessas políticas identificados com os seus princípios e valores, que se doem ao trabalho, não somente por um salário, mas, principalmente, para estabelecer vínculos sociais como militantes do movimento de construção de uma outra economia.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista