Flávia Chaparro - Foto: Liliane Tumelero

Nunca passou pela minha cabeça ter um filho como realização de um sonho, nunca sequer imaginei na minha vida esse papel. E claro que, desde sempre, me senti de certa forma deslocada por não compartilhar os anseios da maioria das meninas com quem convivi durante a vida.

– Você nunca vai saber o que é o amor de verdade.

– Você será incompleta se não botar um filho no mundo.

– Mulher nasceu com o dom da maternidade e é preciso honrá-lo em nome de Deus, do papa, do pastor, ou de qualquer liderança criada pelo homem.

Verdade seja dita que, até certa idade, me vi diante da possibilidade de arder num lugar horrível para onde pessoas que não cumprem as demandas divinas vão quando morrem. Depois, por volta dos 15 anos, comecei a questionar também toda essa divindade que destina pessoas para lugares desse tipo apenas por serem quem são ou por não serem quem esperavam que fossem.

Ontem, eu revi uma amiga querida, depois de mais de seis meses de distância geográfica, e percebi que muitas coisas podem mudar em seis meses.

Minha amiga, Flávia, está grávida.

Marcamos de nos encontrar na Praça da Liberdade, coração de Bonito, e ao chegar comecei a olhar para os bancos em busca da amiga que fez muita falta nos meus dias longe daqui.

E então eu a vi, sentada de pernas cruzadas, os cabelos mais longos do que meses atrás, a barriga maior do que meses atrás e uma luz impressionante dentro daqueles dois olhos de azeviche. Ao me aproximar, ela levantou e nos abraçamos.

Poderia dizer que poucas coisas são mais divinas do que o abraço de uma mulher que alimenta vida dentro de si, poucas coisas são tão poderosas quanto uma mulher com dois corações contidos em seu corpo. Além de linda, de absurdamente linda, desconfio que ela talvez não saiba a potência do brilho que emana agora de sua epiderme.

A Flávia nunca almejou ser mãe e está grávida.

Eu nunca almejei ser mãe e tenho um filho.

Vez ou outra penso em teorias mirabolantes para justificar o comportamento humano. Sempre penso até que ponto os nossos desejos e sonhos são nossos, e até que ponto são demandas de uma sociedade que controla o corpo da mulher e a obriga a reproduzir-se independentemente de sua vontade, independentemente de apoio.

Tá, eu sei que agora várias pessoas vão pensar “Mas ninguém obriga ninguém a transar”, “mas existem métodos contraceptivos gratuitos no SUS”. E eu, confiante, respondo: Como ofertar respostas tão simplistas para algo tão complexo? Como usar de tanta desonestidade e falta de conhecimento num país como o nosso, onde pessoas vão a portas de hospitais para vociferar contra a interrupção da gravidez de crianças vítimas de estupro, e onde os homens sequer sabem o que significa contracepção?

Num país onde precisamos de autorização para decidir sobre nosso corpo, ter um filho é visto como um castigo merecido para quem, querendo ou não, acabe grávida.

Quando eu descobri minha gravidez vivenciei um momento de reflexão profunda sobre mim, sobre o que eu estava disposta a fazer, sobre o que eu poderia enfrentar. Acredito muito que o meu não desejo de ser mãe estivesse diretamente relacionado a uma noção muito ampla sobre como é árduo o trabalho de criar um filho. Nós falamos sobre isso ontem. A Flávia também sabe. Até por ter adquirido uma compreensão elevada sobre como a educação que recebi condiciona muitas das minhas atitudes, e sobre o quanto é difícil mudar os padrões que me foram impostos.

Eu vi muitas amigas se tornando mães ao longo da vida. Amigas de 13, 14, 15 anos. Meninas que precisaram protelar os estudos, passar por constrangimentos vários, engolir a seco para não sofrerem mais do que já estava imposto naquela realidade sem opção, e sem assistência devida.

O mais engraçado é que as pessoas que mais julgam a mulher que não quer filhos ou que interrompe uma gravidez, no geral, acham um absurdo o aborto, a educação sexual na sala de aula, a explicação sincera sobre o sexo e seus desdobramentos,

Pessoas que me fazem pensar que pouco se importam com as crianças, mal enxergam crianças como indivíduos.

Quando decidi que teria meu filho, fiz, sobretudo, um exercício de autonomia e de resistência. Assumindo a responsabilidade de criar um ser humano livre, cercado de segurança e afeto, desconstruído das ideias que eu aprendi na infância.

Ser mãe é a descoberta da nossa natureza mais intrínseca, dos nossos poderes mais bonitos e de nossa beleza mais real. Mas só se a gente quiser, não quando nos obrigam.

Lembro do dia 9 de fevereiro de 2018 quando, por volta das 18h30, eu ouvi:

– Mais uma vez para passar os ombros!

E depois de uma força absurda, da maior força do mundo, os ombros passaram e tudo passou.

Força sobrenatural natural.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Kamila Drieli
Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.