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A adjetivação da economia é uma prática que confunde as pessoas e, comumente, apresenta propostas paliativas para os efeitos nefastos do capitalismo. Os diferentes termos utilizados, em sua maioria, não apontam para a superação do sistema. Trata-se de mais do mesmo com uma outra roupagem, mais suave e, talvez, perfumada.

Os propagadores de adjetivações como economia colaborativa, economia criativa, economia circular e economia verde afirmam, inclusive, que é necessário criar um “capitalismo consciente”. O capitalismo se fundamenta na exploração dos trabalhadores e as empresas objetivam a maximização do lucro e não o bem-viver. Assim, ficam as questões: consciência de quê? Compartilhar, criar, tornar circular e verde para quem, para quê?

Antes de abordarmos o objetivo de cada uma dessas “economias”, é importante sabermos o que é economia, do que estamos falando. Em seu excelente livro “Economia Política para Trabalhadores”, Sofia Manzano afirma que economia é uma palavra que tem origem na antiga Grécia com o seguinte significado: oikos = casa + nomos = normas. Dessa forma, economia trata de normas de organização da casa.

Para compreender e explicar o seu sentido como resultado das relações entre os seres humanos e destes com a casa que habitam, que pode ser um município, um estado ou um país, a autora cita o trecho de um texto de Friedrich Engels: “A economia não trata de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última instância, entre classes, embora essas relações estejam sempre ligadas a coisas e apareçam como coisas”.

Assim, os estudos de economia deveriam ter uma abordagem que valorizasse não só os resultados, mas sobretudo as relações que os determinam. Não se pode limitar a compreensão da economia somente pelos cálculos e análises do PIB e variações da bolsa de valores e do dólar.

Também não recomendável denominar de economia procedimentos de reaproveitamento de resíduos, de valorização da cultura e inovações técnicas que objetivam reduzir o impacto ambiental, se as relações entre os agentes econômicos é a mesma do velho e conhecido capitalismo.

No livro “A Economia da Sociedade Capitalista e suas Crises Recorrentes”, os autores Guillermo Foladori, Gustavo Melazzi e Renato Kilpp afirmam que, ao longo do tempo, o trabalho foi o fator determinante para a organização da sociedade, definindo etapas com características específicas, destacando-se a comunidade primitiva, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo.

Para o advento desse sistema, foi fundamental que se constituísse um grupo de trabalhadores que aceitasse receber um salário para sobrevivência e empresários que explorassem a mão de obra como mercadoria.

As relações de mercado existiam nas etapas pré-capitalistas. No entanto, foi com relações fundamentadas nos princípios e valores do capitalismo que se tornou preponderante o comportamento que expressa a competição e o desejo de levar vantagens. A evidência do lucro como objetivo das relações entre as pessoas e o meio ambiente acarretou desigualdades sociais, destruição ambiental, mercantilização e espetacularização da cultura.

Karl Marx foi quem melhor analisou as relações capital/trabalho e conceituou mais-valia. Trata-se de trabalho não pago, refere-se ao valor que o trabalhador gera e pelo qual não é remunerado, sendo apropriado pelo capitalista e que vai transformá-lo em lucro. Com esse mecanismo os patrões ficam mais ricos e os trabalhadores sobrevivem com a condição que lhes dão pelo salário.

No entanto, mesmo no sistema econômico capitalista há princípios que não se ancoram no modelo emprego/salário. Karl Polanyi, autor do livro “A Grande Transformação”, explica que o sistema econômico hegemônico é integrado por quatro princípios: maximização do lucro; redistribuição; reciprocidade e gestão familiar.

O primeiro representa as empresas capitalistas, onde se encontra o modelo emprego/salário. O segundo é representado pelo Estado, que arrecada impostos para redistribuir à sociedade principalmente em forma de serviços. No terceiro princípio, inserem-se, sobretudo, as cooperativas e associações com atividade econômica. O quarto princípio representa os pequenos empreendimentos de gestão familiar.

Com exceção do princípio, maximização do lucro, nos demais não existe extração de mais-valia. Assim, a tendência é que as empresas capitalistas avancem sobre os empreendimentos de gestão familiar, associações e cooperativas, que representam o modelo trabalho/renda, movidas pela lógica da acumulação do capital, para destruí-los incorporando as unidades de produção e distribuição ou inviabilizando-os pela concorrência que não se dá em condições de igualdade.   

Para os socialistas, o desafio é construir uma sociedade em que não exista exploração dos trabalhadores. Isso é possível com o fortalecimento dos princípios econômicos reciprocidade e gestão familiar, mesmo que seja um processo lento, o que representa a promoção da democracia econômica com a criação de oportunidades para que os trabalhadores não sejam explorados, pois em ambos os princípios não há patrões.

Em relação ao princípio redistribuição, o desafio é desprivatizar o Estado e colocá-lo a serviço da construção de uma economia pautada no ser humano e não no dinheiro, assim como proporcionar prestação de serviços de qualidade à população, como saúde, educação, segurança alimentar.

Paul Singer, no livro “Socialismo ou Barbárie, Rosa Luxemburgo no Brasil”, organizado por Isabel Loureiro, afirma que “não dá para acabar com o capitalismo, a não ser quando ninguém mais estiver interessado em desempenhar o papel de patrão e ninguém mais quiser ser assalariado”.

A questão que se coloca é: o que chamam de economia compartilhada, economia criativa, economia circular ou economia verde contribui para a eliminação da mais-valia, coloca fim à exploração e contribui para a superação do capitalismo?

Economia compartilhada é um termo que surgiu para justificar as relações estabelecidas entre consumidores e prestadores de serviços mediadas por capitalistas que desenvolveram e controlam plataformas digitais. Apropriam-se de parte expressiva dos valores das transações comerciais sem assumir quaisquer obrigações trabalhistas.

Como exemplo, pode-se citar, por serem os mais conhecidos, Uber, Ifood e Airbnb, dentre tantos que existem. Nada neste modelo refere-se a compartilhamento, mas à exploração, que é ainda mais cruel do que àquela do modelo emprego/salário em que os trabalhadores têm direitos trabalhistas.

Os trabalhadores que aceitam as regras impostas pelos donos da plataforma Uber, por exemplo, integram o excedente estrutural de mão de obra, ou seja, são desempregados. Há também os trabalhadores que fazem “bico” pelo fato de o salário que ganham não ser suficiente para viver.

Os motoristas, assim como os entregadores que usam motocicleta ou bicicleta, sequer têm banheiro, local de descanso ou refeitório. Utilizam veículos comprados com os seus recursos e são responsáveis pelos custos de manutenção. Além disso, são obrigados a comprar com recursos próprios acessórios, como caixas de transporte. A remuneração é pequena e são tratados de forma impessoal, como James, por exemplo, expressão criada por uma rede de supermercados.

Os principais argumentos de defesa da existência desses serviços é a redução do impacto ambiental com um número menor de veículos nas ruas ou o aproveitamento de cômodos e imóveis que estão desocupados a maior parte do tempo e, com isso, reduz-se a necessidade de ocupação de áreas livres. No entanto, no termo economia compartilhada não há qualquer questionamento sobre a exploração de trabalhadores.

O economista Ladislau Dowbor afirma na apresentação do livro “Economia de Compartilhamento”, escrito por Arun Sundararajan, que em Berlim foi proibida a locação por Airbnb, pois grupos imobiliários compraram prédios inteiros para alugar a turistas. Esse fato causou redução na oferta de imóveis para os berlinenses e aumento de preços nos aluguéis, o que causou um quadro caótico.

Ladislau conclui “a economia da colaboração navega nas tecnologias do século XXI, mas as regras e a cultura econômica ainda são do século passado”. O notável economista refere-se às relações de exploração que são mantidas com uma nova roupagem. Caso as plataformas digitais estejam sob a gestão de cooperativas de trabalhadores, certamente, teremos economia e tecnologia no século XXI.

É importante ressaltar que diante da falta de empregos, os integrantes das elites econômicas passaram a responsabilizar os trabalhadores desempregados pela sua própria desgraça e afirmam, de forma cínica, que deveriam empreender. Alimentam a ideia de que ser submetido às regras de exploração das plataformas digitais é uma forma de empreendedorismo.

A economia criativa é uma expressão utilizada principalmente para se referir a atividades individuais e de grupos de cultura e/ou entretenimento. No entanto, sabe-se que criatividade é um componente exigido para qualquer atividade. Não existe, no que chamam de economia criativa, uma proposta para acabar com as desigualdades ou a exploração do modelo emprego/salário. Afinal, há algo mais criativo do que os mecanismos de exploração de trabalhadores criados pelas plataformas digitais do Uber, Ifood, Airbnb e outros?

No Relatório da V Plenária Nacional de Economia Solidária, realizada em 2012, consta a posição da economista Sandra Quintela: “A economia criativa nasce como conceito em 2001, na busca da conquista de nichos de mercado, colocada, não como superação ao capitalismo, mas para reproduzi-lo, dado que não questiona de modo algum a quem ou a que serve esta forma de economia. É a utilização da criatividade humana, da arte, da cultura, para a ampliação da exploração dos seres humanos entre si seguindo o modelo capitalista. É uma economia ligada à economia da indústria cultural que disputa os nichos de mercado, com recursos públicos e privados, mas não entra no enfrentamento ao modelo em vigor. Ao contrário, vai aos poucos extinguindo as formas tradicionais de cultura, massificando o que a grande mídia quer afirmar como conteúdo cultural em nossa sociedade”.

Há que ressaltar que existem aqueles que se engajaram na ideia da economia criativa e apoiam grupos autogestionários musicais, de teatro, folclore e artesania, assim como artistas que atuam individualmente. Neste caso, proporcionam o fortalecimento dos princípios de reciprocidade e de gestão familiar do sistema econômico.

Quanto à economia circular, seus adeptos afirmam que é necessário consumir de forma sustentável e reduzir o desperdício. Propõem que o planejamento e escolha de matérias primas de determinado produto sejam definidos de tal forma que os destinos desses materiais após o uso sejam reincorporados à cadeia produtiva. Sugerem que o reaproveitamento possibilite a sua reintegração com um valor agregado igual ou superior ao produto original quando descartado. 

Esse tipo de proposta pode ser implantado em uma pequena, média ou grande empresa, inclusive naquelas vinculadas ao sistema financeiro. Não há um questionamento sobre as relações de trabalho ou soluções para graves problemas, como a desigualdade social, a fome, o racismo e diferentes formas de discriminação.

Aqueles que aderiram à economia verde a definem como um conjunto de processos produtivos que geram desenvolvimento sustentável nos três setores de atividade produtiva:  primário, secundário e terciário.  Afirma-se que o principal objetivo da economia verde é possibilitar o desenvolvimento econômico compatibilizando-o com igualdade social, erradicação da pobreza e melhoria do bem-estar dos seres humanos com a redução dos impactos ambientais negativos. 

A economista Sandra Quintela, deixou registrado na V Plenária Nacional de Economia Solidária a seguinte posição sobre esta proposta: “A economia verde não está em nenhum momento colocada para a superação do sistema capitalista através da associação dos/as trabalhadores/as, tendo ela surgido como uma economia onde transformamos a natureza em mercadoria. É um “esverdeamento” do capitalismo através do apelo para a diminuição da emissão de gás carbônico, mas mantendo os mesmos níveis de consumo e de exploração dos seres humanos entre si. Assim, as árvores, o céu, o mar, os pássaros passam a ter preço e a ser comercializados em bolsas de valores específicas. O capitalismo e a ecologia são questões opostas que não podem conviver num mesmo planeta e, por isso, na Cúpula dos Povos rejeitaram as propostas da economia verde”.

Observa-se que economia do compartilhamento, economia criativa, economia circular e economia verde não apontam para se ter uma organização econômica para além do capital. No entanto, há aspectos de cada uma dessas economias adjetivadas que podem ser considerados na construção de uma outra economia, que seja fundamentada na autogestão, organizada sem patrões.

A economia solidária contempla todas as exigências por se apresentar como anticapitalista no campo teórico e nas ações. Inclusive, por isso, não foi considerada no título do presente texto, por ser agregadora de todas as lutas, sejam elas para a inclusão socioeconômica, contra a exploração de trabalhadores ou feministas, antirracistas e ambientais.

Economia solidária é sinônimo de socialismo autogestionário, de uma economia fundamentada em relações horizontais em que não existe mais-valia. Trata-se de um modelo de desenvolvimento além do capitalismo.

A economia solidária se encontra organizada em todos os países e pode ser verificada no princípio reciprocidade do sistema econômico, segundo a explicação de Karl Polanyi, tendo o associativismo e o cooperativismo comumente como formas jurídicas.

Há também muitos grupos informais organizados sob os princípios e valores da economia solidária, onde se pratica a autogestão e democracia. Além disso, há muitos casos em que responsáveis por empreendimentos de gestão familiar se associam a outros para comprar, comercializar e praticar o autofinanciamento por meio de fundos rotativos solidários e apoiar o desenvolvimento local por integrarem bancos comunitários.

Os agricultores familiares e artesãos, por exemplo, comumente se unem para comercializar em circuitos curtos solidários de produção e comercialização. Eles detêm individualmente os meios de produção e coletivamente os meios de financiamento e comercialização. Trata-se de iniciativas econômicas solidárias. Nestes casos, também não há mais-valia.

A economia solidária foi contemplada no Brasil como política pública entre 2003 e 2016 e tinha Paul Singer como secretário nacional. Neste período, os empreendimentos econômicos solidários chegaram a mais de 20 mil no território nacional.

Após a saída de Singer com o golpe jurídico-parlamentar que tirou Dilma Rousseff da presidência da República, a Secretaria Nacional de Economia Solidária foi aniquilada pelos governos Temer e Bolsonaro.

No entanto, os militantes e praticantes da economia solidária se organizam como movimento social no Fórum Brasileiro de Economia Solidária e nos Fóruns estaduais, regionais e municipais. No Congresso Nacional há um projeto de lei que cria a política nacional de economia solidária e um Projeto de Emenda Constitucional que a reconhece como integrante dos princípios da ordem econômica brasileira.

Em São Paulo, em 2011, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que jamais foi regulamentado pelo governo estadual. No entanto, o mesmo governo mantém uma Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Certamente a autogestão, a economia sem patrões, proposta pela economia solidária, provoca aversão a todos os governantes que desde aquele ano passaram pelo Palácio dos Bandeirantes. 

Em diversos países, a economia solidária experiencia um processo de institucionalização. Integra a Constituição ou existem políticas públicas de apoio, como França, Argentina, Bolívia, Equador, Colômbia, México etc. Na França, por exemplo, em 2014, foi criada uma lei de apoio à economia social e solidária, denominação dada naquele país ao que chamamos de economia solidária.

Solidariedade tem origem no latim, advém da palavra solidus, que significa sólido, consistente. Economia solidária vincula-se à construção de relações de reciprocidade entre as pessoas e destas com o ambiente fundamentada na autogestão e na democracia para geração de trabalho e renda, para o bem comum.

Trata-se de solidificar relações com apoio mútuo, sem exploração ou egoísmo. Solidariedade vai além da cooperação pragmática, do compartilhamento, de procedimentos de reaproveitamento de produtos, da criatividade. Trata-se da construção de um modelo de desenvolvimento econômico que deveria ser assumido por todos os movimentos sociais e partidos políticos progressistas, assim como ser assimilada como política pública pelos governos municipais diante da impossibilidade da geração de empregos.

Economia, ou seja, as normas de organização da casa, somente têm sentido se for de forma solidária, com base em relações que promovam o bem viver. Caso contrário, a casa estará desarrumada, poluída e com a maioria dos seus habitantes com fome, desnutridos, desempregados ou com trabalhos precarizados.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista