Simulação de atendimento ao novo coronavírus em Manaus - Foto: Alex Pazuello/Semcom/Fotos Públicas

Esméria notou um nódulo na mama esquerda e procurou a unidade básica de saúde. Depois de um ano e meio conseguiu fazer a biópsia, diagnosticando um câncer de mama já em estágio avançado, inoperável.

Ana Cláudia, 35 anos, cinco filhos, nunca fez exame ginecológico de rotina. No parto do quinto filho, descobriu um câncer de colo uterino avançado, que a levaria a morte em seis meses.

José Carlos, 52 anos, teve um câncer avançado de cabeça e pescoço e um acesso ao tratamento dificultado por não possuir qualquer documento após o deslizamento de sua casa nas chuvas. Não conseguiu tirar segunda via de seu RG e tinha perdido a certidão de nascimento. O que essas histórias têm em comum?

Mistanásia foi um termo criado em 1989 por Marcio Fabri dos Anjos, licenciado em filosofia e doutor em teologia, e vem do grego mys, que quer dizer “infeliz” e thanathos, que quer dizer “morte”. Ou seja, morte infeliz, morte precoce por falta de infraestrutura e pela pobreza.

Nos meus oito anos de oncologia me deparo com a morte quase que diariamente. Para a maioria das pessoas isso é visto como doloroso, não entendem como eu consigo lidar com tamanho sofrimento.

Mas, ao meu ver, a morte natural que chega devido a uma doença grave me enche de solidariedade e me faz enxergar a finitude da vida como algo real e concreto. Me impulsiona a ser alguém melhor.

Porém, sinto exatamente o oposto quando estou diante de uma mistanásia, às vezes chego até a sentir raiva. Esse cenário é a fragmentação da solidariedade e isso é capítulo comum do nosso Brasil tão desigual. Talvez seja a doença crônica mais cruel da nossa realidade.

Faço minhas, as palavras do Dr. Rajagopal, médico paliativista indiano: “A frustração não é sobre pessoas morrendo, a frustração vem quando pessoas morrem com sofrimento desnecessário”. E ainda acrescento: quando morrem precocemente por descaso de poderes públicos, que têm o dever constitucional de oferecer saúde a todos.

Saúde deveria ser dever do Estado e um direito de todos, mas não é bem assim! Isso fica claro quando se constata a diferença nos graus de mortalidade entre as classes sociais.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) influencia no adoecimento e na faixa etária de falecimento. Um maior nível socioeconômico “protege” de patologias, em especial, as doenças mentais.

Essa constatação é ainda reiterada durante a pandemia, em que o boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo do dia 30 de abril aponta que o risco de morte de negros por Covid-19 é 62% maior em relação aos brancos.

O Núcleo de Operações e Inteligências em Saúde (NOIS), liderado pela PUC-Rio, também analisou dados de letalidade no Brasil da Covid-19. Em sua 11ª Nota Técnica, com dados até 18 de maio, aponta que a chance de morte de um paciente preto ou pardo analfabeto são 3,8 vezes maiores do que um paciente branco com nível superior.

Além da população pobre ser mais desprivilegiada em bens materiais, ter menos oportunidades se expondo mais ao vírus, tem também maior potencial para o desenvolvimento das morbidades que aumentam o risco de morte pelo vírus.

Nada do que digo é novidade. É, aliás, legitimado, quando Guilherme Benchimol, CEO da XP Investimentos, comenta sobre a pandemia: “Acompanhando um pouco nossos números eu diria que o Brasil está bem, né? Nossas curvas não estão tão exponenciais ainda. Eu acredito que o pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média e alta. O desafio é que o Brasil é um país que tem muita comunidade, tem muita favela e isso dificulta o processo todo”.

Sim, Guilherme Benchimol, tem um Brasil que está ótimo! Vivendo o isolamento social dentro de suas casas confortáveis, podendo proteger a si e sua família. Este mesmo Brasil tem uma expectativa de vida que beira os oitenta anos.

Mas temos outro Brasil, um que conheci muito bem durante minha formação médica, nos dois anos que trabalhei no Hospital Santa Marcelina, morando em Itaquera, e nos sete anos de trabalho no Hospital Tiradentes, em Cidade Tiradentes.

Este Brasil é pobre e com uma expectativa de vida, segundo estudo da Rede Nossa SP, de 23 anos a menos! E isso não é por uma questão de escolha dessas pessoas, e sim por uma questão de escolha política!

O Brasil está, desde 15 de maio de 2020, sem ministro da Saúde. Nosso governo central age com irresponsabilidade ímpar e não protege os seus cidadãos, oculta dados sem divulgar o número de mortos! Adoecer de Covid-19 nas nossas circunstâncias é ser vítima de uma infecção evitável.

Temos exemplos de países onde políticas públicas foram tomadas com responsabilidade, como a Nova Zelândia, o Paraguai, o Uruguai e o Vietnã. E isso não é privilégio de países desenvolvidos. A Etiópia e o Togo, por exemplo, têm se mostrado muito mais preparados para uma condução responsável dessa crise humanitária do que nós.

Falar sobre cuidados paliativos é falar sobre humanidade e também sobre luta por justiça social. Não à toa que Dr. Rajagopal recebeu a indicação do prêmio Nobel pelo trabalho pioneiro de cuidados paliativos em seu país.

Estudar cuidados paliativos é conhecer a história de pessoas tão corajosas como a de Cicely Saunders, britânica que cursou enfermagem, serviço social e medicina, e dedicou sua vida para aliviar o sofrimento de pessoas marginalizadas da medicina, os pacientes terminais vítimas, muitas vezes, de câncer. Em uma de suas viagens, ela disse: “Se um homem de uma vila pobre da Índia morrer sem dor por causa do que eu fiz, tudo valerá a pena”.

É sobre isso que se trata cuidar de pessoas. E não deveria ser somente uma preocupação médica e, sim, uma prioridade política e uma preocupação de todos. A pandemia é um gatilho para que tudo se aflore e estampe mais ainda na nossa cara a desigualdade que temos que enfrentar. Que o nosso luto pelos mortos vire luta!