Eduardo Sanovicz se elegeu presidente do CES em 1980 - Foto: Arquivo Abear

A trajetória de lutas por democracia e por uma sociedade mais justa empreendida na cidade, ao longo dos anos, está intimamente ligada à atuação marcante do Centro dos Estudantes de Santos (CES). A entidade, perseguida fortemente pela ditadura militar, sempre se pautou por extrapolar as batalhas travadas apenas no campo acadêmico e por assumir o protagonismo de lutas maiores e mais complexas.

Há exatos 40 anos, nos dias 11 e 12 de junho de 1980, ainda sob a égide de um regime militar violento e assassino, um grupo de jovens contagiou a cidade com um misto de alegria, irreverência, ousadia e consciência política.

Ao todo, 17.145 estudantes universitários e secundaristas da região se mobilizaram para eleger a diretoria do Centro dos Estudantes de Santos.

Depois de ter sido fechada por obra do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, era o momento histórico da retomada e da reconstrução da entidade, que, assim, escrevia uma nova página na cena do movimento estudantil santista.

Após intensa disputa, a chapa “Todo Mundo no Centro”, formada por militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), levou a melhor. Encabeçada por Eduardo Sanovicz, então estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos (Faus), da Universidade Católica de Santos (UniSantos), o grupo venceu, conquistando 6.845 votos.

Em segundo ficou a “Mobilização Estudantil”, com 5.674 votos, e, em terceiro, com 4.168 votos, a “Chega Mais”.

Sanovicz, atualmente presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), recorda com orgulho do empenho do movimento estudantil em transformar o país.

“As nossas bandeiras mais importantes naquele momento eram a luta pelo ensino público, pois a região não tinha ensino público e gratuito, e contra o aumento abusivo das anuidades. É claro que nessa agenda você vai forjando uma série de outras bandeiras de luta. Havia o movimento pela anistia, a luta pela Constituinte, enfim, a luta pela volta da democracia”, relembra.

Agora, 40 anos depois, o cenário mudou, mas o CES continua na ativa. Hoje presidido por Aline Cabral, uma de suas lutas mais antigas é para reaver a propriedade do imóvel que abriga a sede da entidade, na Avenida Ana Costa, 308, no Campo Grande.

Folha Santista: A eleição do Centro dos Estudantes de Santos, em 1980, é considerada histórica. Em sua opinião, por que tem essa característica?
Eduardo Sanovicz:
A eleição de 1980 é histórica, primeiro porque é a reconstrução do Centro dos Estudantes, que havia sido fechado em 1968, com requintes de violência e crueldade pelo Erasmo Dias (coronel comandante da Fortaleza de Itaipu à época e homem forte do regime militar), prendendo, inclusive, o Cebola (Jaime Rodrigues Estrella), o Max (Ordonez) e o Clóvis (da Mata), que eram as três lideranças estudantis daquele momento. Cebola, que depois ficaria anos preso e foi barbaramente torturado. Em segundo lugar, é histórica porque é o momento de maior ascenso dos estudantes em um processo de politização contra a ditadura militar. As nossas bandeiras mais importantes naquele momento eram a luta pelo ensino público, pois a região não tinha ensino público e gratuito, e contra o aumento abusivo das anuidades. É claro que nessa agenda você vai forjando uma série de outras bandeiras de luta. Havia o movimento pela anistia, a luta pela Constituinte, enfim, a luta pela volta da democracia. No momento em que havia todo um caldo de cultura no país, de reorganização de entidades, a UNE (União Nacional dos Estudantes), em 1979, por exemplo, o movimento estudantil acaba tendo uma voz em Santos muito importante. Em terceiro lugar, é histórica porque refaz um espaço que era fundamental para formar lideranças políticas, para formar um espaço de debates culturais, políticos ou sobre lazer, que acaba formando gente que contribuiu muito, ao longo de vários anos, com as lutas democráticas.

Folha Santista: O que você diria que mais o marcou nessa experiência?
Sanovicz:
O que mais me marcou foi o quanto Santos se envolveu naquele debate e a forma calorosa pela qual a cidade recebeu de volta o Centro dos Estudantes. De repente, eu me via andando pelos lugares e as pessoas animadas, apoiando, ajudando. Como a cidade vinha de um processo de massacre pesadíssimo, o golpe (1964) se abateu sobre a cidade com muita ferocidade, quando os estudantes começaram a se reorganizar foi um clima de alto astral, se espalhando por muitos segmentos que eu nem imaginava. Então, eu fiquei muito impressionado com isso. De repente começar a ser reconhecido na rua, as pessoas dando força, me animando. Foi superbacana, me marcou muito o envolvimento da cidade.

Foto: Arquivo pessoal/Sérgio Pardal

Folha Santista: Ao todo, 17.145 estudantes votaram, o que é um número extremamente expressivo. Em sua avaliação, por que o movimento estudantil foi esvaziando ao longo dos anos?
Sanovicz:
Ao longo dos anos, na medida em que foram avançando as lutas democráticas, vários segmentos da sociedade foram se organizando e construindo suas próprias pautas. O movimento estudantil, lá no final dos anos 70, na virada para os 80, falava por diversos segmentos que não tinham estrutura para ter sua agenda própria. Então, desencadeou a partir daí um movimento de cultura, uma bandeira específica do lazer, uma bandeira de educação, uma bandeira por direitos de uma série de segmentos, toda a agenda LGBT, enfim, toda uma agenda de afirmação dos direitos humanos. A partir da organização, do fortalecimento de cada um dos segmentos, o movimento estudantil deixa de ser uma espécie de ente que canalizava tudo para si. Uma segunda questão é que quando a ditadura acabou, o movimento estudantil tinha sido muito competente em levar os estudantes às ruas. Mas, quando ele tem que reencontrar sua própria identidade nas bandeiras internas das escolas, não consegue resgatar o mesmo vigor que tinha naquele tempo. Claro, você tem depois dois momentos importantes, que são a campanha das Diretas, em 1984, e o impeachment do Collor (Fernando), em 1992, onde é registrado novamente um ascenso. Mas, de lá para cá, você tem um movimento estudantil que luta para resgatar o poder protagonista, porém, com dificuldade de fazer isso.

Folha Santista: A cultura também era uma bandeira muito forte do movimento estudantil?
Sanovicz:
Acima de todas as bandeiras era a luta pela democracia, era a luta contra a ditadura. A nossa tradução concreta para dentro da universidade, para dentro do movimento secundarista, era a luta pelo ensino público e gratuito, pela qualidade do ensino, por infraestrutura ligada às necessidades que nós tínhamos de equipamentos etc. Também uma bandeira muito forte era a cultura, sem dúvida. Vale registrar, por exemplo, a realização do Festival Estudantil da Canção, o primeiro, em 1980. Nós fizemos na sede do Sindicato dos Metalúrgicos e foi vencido pelo músico Julinho Bittencourt, com a canção chamada “Velho Gaúcho”. O teatro estava cheio, foi um negócio muito bonito, porque naquele momento não havia espaço para essa produção cultural jovem e descolada da censura e dos grandes mainstreams.

Folha Santista: Como você vê hoje a mobilização estudantil e acha possível traçar um paralelo com os dias atuais?
Sanovicz:
Como professor da USP, indo à universidade toda a semana, eu vejo uma tentativa das entidades de base, dos centros acadêmicos, de mobilizar os estudantes tanto em cima de questões concretas, do cotidiano da universidade, quanto de lutas gerais, contra o fascismo, pela democracia, pela liberdade. Mas, não creio que a gente possa traçar paralelos. Hoje, a gente vive um momento em que, primeiro, não é tão duro quanto nos anos 80, embora haja uma ameaça no ar. A grande diferença é que todos os segmentos da sociedade têm suas entidades funcionando plenamente. Além disso, e principalmente, os veículos de mídia, os meios de comunicação, os instrumentos de contato entre as pessoas, são extremamente amplos. Então, acho que não é correto, do ponto de vista político e do ponto de vista histórico, traçar um paralelo. São momentos completamente distintos, com agendas e capacidade de mobilização, a partir da universidade, completamente distintas. Não que isso seja ruim, apenas significa que hoje há um arco de possibilidades muito maior do que havia 40 anos atrás, quando quase tudo desaguava no movimento estudantil.

Foto: Arquivo pessoal/Mauro Scazufca

Folha Santista: Que importância você acha que teve sua geração para a retomada do processo democrático no país?
Sanovicz:
A história da humanidade tem momentos em que as pessoas são chamadas a se posicionar, a fazer opções, a se colocar. E nesse momento, há segmentos da juventude que assumem riscos, vão à luta e acabam se colocando à frente, vão se colocando como protagonistas. Então, o que eu trago com muito orgulho desse tempo todo é ter sido parte de uma geração que assumiu riscos, que foi à luta, que construiu entidades e agendas, que mobilizou pessoas e, de alguma forma, ampliou o grau de consciência de toda uma geração que, até hoje, está por aí, trabalhando, estudando, militando, atuando. Onde quer que as pessoas que participaram daqueles movimentos estejam hoje, elas contribuem com aquilo que viveram e, principalmente, com os sentimentos que trazem e com a postura profundamente democrática e libertária que trazem consigo.