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Por Newton José Rodrigues da Silva, Francisca Eliene da Silva, Susana Santos e Alcielle dos Santos*

O Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista (FESBS) publicou as suas propostas para candidatos às prefeituras e câmaras municipais da região (https://folhasantista.com.br/noticias/ativismo/forum-de-economia-solidaria-da-baixada-santista-apresenta-propostas-a-candidatos-da-regiao/).

Posteriormente, alguns integrantes do FESBS publicaram um texto que também teve a intenção de orientar futuros governantes intitulado “Ativar Proximidades para Construir a Economia Solidária” (https://folhasantista.com.br/noticias/ativismo/ativar-proximidades-para-construir-a-economia-solidaria/).

O presente texto apresenta mais uma contribuição composta de conceitos, exemplos e ensinamentos que podem ser mobilizados para se ter uma outra governança na Baixada Santista, fundamentada em políticas públicas de inclusão socioeconômica e redes de cooperação.

A teoria econômica clássica, fundamentada no liberalismo, sustenta que o mercado deve ser autônomo, o mais descolado possível do entorno social, inclusive dos governos. Acredita-se que, dessa forma, se torna autorregulado e promove a felicidade e o bem-estar coletivos. Isso implica que os agentes engajados nesta forma de organização econômica busquem de forma racional, com base no utilitarismo e no individualismo, os melhores resultados.

Com o advento do neoliberalismo, ou seja, a radicalização do liberalismo com a proposta de torná-lo uma forma de vida fundamentada na competição regida pelo mercado, atribuiu-se a denominação de Homo economicus ao ser humano que assume este comportamento. Economia e sociedade estariam distanciadas e as relações econômicas reduzidas ao toma lá dá cá dinheiro por serviços e produtos.

Dessa forma, o encontro de dois Homo economicus para a realização de negócios em que cada um quer tirar o maior proveito possível da situação, seria o encontro de dois egoístas, pois não há qualquer característica de cooperação na fugaz relação estabelecida, evidenciando somente a competição. Será que esta forma de viver satisfaz os seres humanos e está de acordo com a sua história, necessidades e essência?

No sistema econômico brasileiro não existe somente o princípio econômico fundamentado na maximização do lucro, como pleiteiam os neoliberais.

Karl Polanyi, no seu clássico livro A Grande Transformação, publicado em 1944, explica que, além deste princípio, outros três integram o referido sistema. Há o princípio da redistribuição, no nosso caso representado pelo Estado, que recolhe impostos para redistribuir em forma de produtos e serviços; há o princípio do modelo familiar de gestão e o princípio da reciprocidade, integrado, principalmente, pelas associações e cooperativas. Observa-se que a reciprocidade também ocorre no seio de empreendimentos familiares, sendo resultado de proximidades entre parentes. É comum encontrar diferentes empreendimentos de gestão familiar que atuam de forma associativa para a compra de insumos ou comercialização, o que reforça as relações de reciprocidade. O apoio do poder público a esses empreendimentos e às iniciativas econômicas solidárias que desenvolvem, assim como a dos seus responsáveis com os consumidores fidelizados, reforçam as relações de reciprocidade.

No Brasil, há um significativo número de trabalhadores desempregados, desalentados ou em atividades informais que, comumente, são realizadas por necessidade de sobreviver após serem dispensados pelas empresas. Este fenômeno não pode ser chamado de empreendedorismo, como afirmam os neoliberais, mas trata-se de fazer algo pela sua sobrevivência e da família e comumente de forma precarizada.

O professor da Unicamp, Roberto Dagnino, afirma que 80 milhões de brasileiros não têm ou terão carteira assinada (https://www.youtube.com/watch?v=MxuS7xxm49Y&t=95s).

Para agravar o quadro, as ações governamentais dos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, que desregulamentaram as relações trabalhistas, provocaram perdas consideráveis para os trabalhadores.

No entanto, evidencia-se ainda a necessidade de os brasileiros, de forma geral, terem vínculo empregatício. Há uma educação, formal e informal, para se ter estabilidade e/ou competir no mercado para se ter salário pago por uma empresa ou pelo Estado. Este sonho ainda perdura, apesar da sombria situação, com aumento do desemprego que se acentuou com o afastamento social provocado pela pandemia do coronavírus.

Além disso, na reunião ministerial de 22/04/2020 o ministro da economia, Paulo Guedes, declarou que o governo federal deve disponibilizar recursos somente para grandes empresas, que este é o único caminho para o desenvolvimento.

Obviamente que esta opção ignora completamente a pluralidade da economia e traz a seguinte questão: quais valores são criados e quem se apropria dos resultados de uma política como esta? Certamente este modelo apoia-se na competição e na concentração de riquezas, provocando o aumento da pobreza.

Outra questão que emerge: quais consequências terão para os empreendimentos de gestão familiar, as associações e cooperativas populares? Estes segmentos necessitam de financiamento, formação continuada e apoio na comercialização para que haja geração de trabalho e renda e promoção do desenvolvimento local.

Políticas públicas

As necessidades da população por saúde, educação, assistência social e oportunidades de trabalho são comumente canalizadas para as prefeituras, em alguns casos para os governos estaduais e raramente para o governo federal. É na cidade, nos bairros, onde a vida acontece. Dessa forma, as políticas públicas municipais de apoio e fortalecimento dos modelos de gestão familiar e associativo/cooperativo são de fundamental importância.

O termo Políticas públicas se refere a um conjunto de decisões formalizadas sobre um assunto de interesse coletivo, que é considerado importante e prioritário para o desenvolvimento social. É a expressão formalizada de diversos interesses processados.

As políticas públicas emanam do poder público que as formaliza, legitima e controla. Uma política pública é constituída por uma totalidade de medidas concretas que se inscreve em um quadro geral de ação, o que permite distingui-la de uma ação isolada.

Assim, a política pública tem um público definido, isto é, grupos ou organizações cuja situação é afetada pelas ações, que obrigatoriamente têm objetivos a alcançar. Dessa forma, as políticas públicas de apoio e fortalecimento da economia solidária (EcoSol) devem ser direcionadas para as populações pobres.

A EcoSol é definida como uma forma de organização econômica que se fundamenta nas associações, cooperativas e grupos informais que se dedicam a produzir, comercializar, poupar, consumir, prestar serviços.

Historicamente, em momentos de crise do modelo “emprego – salário”, a economia solidária tende a se expandir por se fundamentar no modelo “trabalho – renda”.

O fortalecimento dos empreendimentos econômicos solidários e daqueles de gestão familiar contribui para a democratização da economia, criando oportunidades para pessoas que não encontraram emprego, mesmo com suas competências e talentos. Afinal, reduzir custos por meio da liberação de mão de obra é uma lógica das empresas privadas, inclusive com a adoção de novas tecnologias.

Capital social, capital cultural e capital econômico

A dinâmica organizacional das comunidades é determinante para que resultados positivos sejam obtidos na execução das políticas públicas, principalmente de EcoSol, considerando seus princípios, como democracia, solidariedade, autogestão e transparência.

Exige-se, portanto, o apoio governamental e não a apropriação política dos grupos de EcoSol, como se fossem obra do governo. Para evitar esse tipo de desvio e potencializar os impactos positivos das políticas públicas, há somente um caminho: a existência ou a construção de capital social nas comunidades.

Os resultados positivos da interação entre políticas públicas e organização social como fator de desenvolvimento socioeconômico foram apontados, pela primeira vez, pelo francês Alexis de Tocqueville no livro A Democracia na América. Esta obra é resultado de uma viagem de estudos do autor aos EUA na década de 1830, quando registrou este fenômeno.

Em 1961, Jane Jacobs utilizou, pela primeira vez, a expressão capital social no sentido de se referir a redes de colaboração territoriais no artigo intitulado A Morte e a Vida nas Grandes Cidades Americanas.

No entanto, somente a partir de 1980 o termo capital social se expandiu entre acadêmicos e gestores públicos devido à publicação do texto intitulado O Capital Social. Notas Provisórias, pelo filósofo e sociólogo francês Pierre Bourdieu, que o conceitua como “a totalidade de recursos existentes ou potenciais que estão vinculados a uma rede permanente e útil de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e interreconhecimento entre os atores integrantes da rede”.

Estes dois aspectos, interconhecimento e interreconhecimento, apontados pelo autor, são de fundamental importância, pois ativam as proximidades geográfica, econômica e social fundadas em trocas materiais e simbólicas e facilitam a construção de redes de colaboração territoriais.

Para Pierre Bourdieu, a capacidade de uma pessoa agir na sua comunidade em favor de projetos coletivos depende do volume do capital social que esta pessoa possui, o que depende da extensão das relações que ela mobiliza dentro e fora do local onde atua.

Assim, os resultados da ação de um grupo estão relacionados com a solidariedade assimilada como reciprocidade e não caridade no seio da comunidade e em suas relações estabelecidas com apoiadores externos.

Ainda analisando indivíduos e suas relações em redes de colaboração, Bourdieu define um outro fator importante, o capital cultural, de constituição individual, mas que impacta o volume de capital social de um coletivo.

A origem do conceito de capital cultural está no estudo da desigualdade como fator que influencia positiva ou negativamente o sucesso escolar.

O autor nomeia como capital cultural o repertório herdado da família, de forma indireta, que compreende desde o vocabulário ao conhecimento artístico e cultural, tendo uma relação direta com a classe social de origem. É um “ter” que se torna “ser”, segundo Bourdieu, e que é cultivado de acordo com a renda familiar, que possibilita adquirir bens materiais como livros, ou promover experiências como ir a museus e ao teatro, o que interfere no desempenho do estudante.

A escola, como instituição, tende a conservar a classe social de origem, ou seja, não consegue proporcionar o enriquecimento do capital cultural em medida suficiente para transformar o cenário social de desigualdade, o que amplia a importância dos grupos que atuam em outros coletivos sociais.

Atuar de forma coletiva toma grande importância em comunidades em que o capital econômico é baixo. Unir forças, talentos e ativar as proximidades geográfica e organizacional para a geração de trabalho e renda é uma forma de construir uma outra realidade econômica, fundamentada na criação e ampliação do capital social e promoção de interação de saberes, o que também promove o enriquecimento do capital cultural.

Posteriormente à constatação de Tocqueville, à citação de Jacobs, e à conceituação de Bourdieu, o norte-americano Robert Putnam e colaboradores estudaram, entre os anos de 1970 e 1990, os efeitos de uma reforma administrativa na Itália que descentralizou as decisões governamentais.

A sua conclusão foi de que nas regiões onde havia maior capital social obteve-se melhores resultados socioeconômicos. Enquanto aquelas com baixo estoque de capital social, inclusive dominadas pela máfia que intimidam e inibem as relações de proximidade entre moradores, tiveram um desempenho ruim.

O resultado deste estudo consta no livro Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna, onde Putnam faz referência a capital social como “as características de organização social tais como as redes, as regras e ao mesmo tempo a ação coletiva fundamentadas na confiança, que facilitam a coordenação e a cooperação para o bem de todos, ou seja, para aumentar a eficiência da sociedade”.

Após estudar a Itália, o mesmo autor realiza uma pesquisa em que aborda o capital social existente nos EUA entre as décadas de 1950 e 1990 e conclui que há perdas na dinâmica social na sociedade norte-americana, devido a fatores como aumento do individualismo, competição e isolamento com a adoção de tecnologias modernas, havendo queda de participação nos sindicatos e associações.

O seu artigo foi publicado em 1995 com o título Jogando boliche sozinho: o declínio do capital social nos EUA. Para o autor, os norte-americanos continuavam a jogar boliche, a atividade até mesmo aumentou, mas não mais em grupos, quando podiam conversar, conviver e se apoiar mutuamente. Atualmente, jogam sozinhos.

Com base nesses estudos, fica evidente que o desenvolvimento socioeconômico está associado à interação entre políticas públicas e capital social. A ausência de um desses fatores, pode provocar pobreza, violência e exclusão cultural e socioeconômica.

Assim, serão apresentados dois casos. O primeiro, referente ao México 70, bairro popular de São Vicente/SP. Apesar das relações de confiança, solidariedade em forma de reciprocidade e engajamento cívico da população, não há, ainda, uma política pública de apoio e desenvolvimento da economia solidária.

Assim, há iniciativas econômicas solidárias que estão na informalidade e se desenvolvem no seio da Associação Comunitária Flor do México e contam somente com o esforço dos moradores que objetivam a sobrevivência.

O segundo caso refere-se aos bairros Cota, de Cubatão/SP. Trata-se de uma abordagem histórica sobre os efeitos de uma política pública que, com base em uma série de intervenções, possibilitou a criação de capital social com engajamento cívico dos moradores e estabelecimento de confiança, que resultou no surgimento de seis empreendimentos econômicos solidários.

O caso do bairro México 70 de São Vicente

O México 70 é habitado por 28 mil pessoas notadamente de baixa renda e se situa na periferia do município de São Vicente. Parte do bairro é formado por palafitas. A criação do capital social desta comunidade teve início em 2004, com a realização de reuniões de mães em uma creche.

Apesar das dificuldades financeiras que enfrentavam, passaram a contribuir semanalmente para a compra de frutas, legumes e verduras que não eram fornecidos pela prefeitura, responsável pela gestão do equipamento. Além disso, debatiam os problemas enfrentados pelas crianças no cotidiano.

Em 2006, mães de outra creche do mesmo bairro adotaram o mesmo procedimento. No entanto, mais um problema surgiu nos dois equipamentos da prefeitura: a falta de material de limpeza. A mesma mãe que propôs as reuniões e apoio coletivo para reforçar a alimentação das crianças na primeira creche, articulou a coleta de óleo de cozinha usado pelas famílias para troca por materiais de limpeza com um comerciante. Esta iniciativa foi denominada “Compromisso com o Futuro” e envolveu 75 famílias vinculadas às creches.

Posteriormente, se expandiu por estabelecimentos comerciais e outras famílias do bairro. O excedente do valor correspondente às necessidades de materiais de limpeza das creches passou a ser utilizado nos custos da organização de outro projeto denominado “Ação Compartilhada com a Comunidade”.

Este projeto consiste em realizar com as mães, crianças e adolescentes do bairro festas em datas comemorativas para proporcionar lazer devido à carência de atividades esportivas e culturais.

Criou-se as funções do multiplicador e do monitor, que são assumidas por crianças e adolescentes na faixa etária entre 10 e 15 anos. As funções são orientar filas, cuidar das crianças menores, organizar a utilização dos brinquedos e outras atividades. Ao final, participam das reuniões de avaliação.

A organização das mães e as festas são o núcleo da criação das relações de confiança e de envolvimento cívico da comunidade, ou seja, do capital social. Além disso, há uma ampliação da rede com o apoio de um assistente social, gestor em economia solidária, que anima as rodas de conversa e professores da escola.

Em 2010 foi criada a Associação Comunitária Flor do México, que passou a ser a referência da dinâmica das ações e dos projetos já criados. A presidente da entidade é a mãe que mobilizou o apoio às creches, que propôs os projetos “Compromisso com o Futuro” e “Ação Compartilhada com a Comunidade”.

Esse fato evidencia a necessidade de haver atores sociais que coloquem as pessoas em relação de acordo com a criação de um quadro de interesse comum para que se construam as redes sociotécnicas que viabilizam os projetos. Afinal, como afirmam os sociólogos da inovação Bruno Latour e Michel Callon, nenhuma ideia nasce boa ou se viabiliza sem que uma rede de atores sociais a porte.

No entanto, a participação do poder público nesta dinâmica foi pontual, como um curso realizado 2013, no âmbito da Agenda 21 da Petrobras. O objetivo era formar 32 gestores sociais, mas o interesse na comunidade foi grande e participaram 125 pessoas. Foram utilizadas duas salas cedidas pela prefeitura.

Além disso, fizeram um curso no Sesc de horta comunitária também pela Agenda 21 e tiveram assistência técnica em horticultura de um técnico da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI). Por fim, ganharam quatro máquinas de costura do Fundo Social do Estado de São Paulo, que não são utilizadas por falta de local para funcionamento.

A falta de interesse do poder público em se inserir na rede dos moradores e fortalecê-la torna-se evidente, quando se considera o fato de que em 2004 o governo estadual construiu um prédio com algumas salas na comunidade, que é utilizado eventualmente e não o cede para que seja um centro de referência de economia solidária, inclusive para abrigar as costureiras.

Apesar dessa postura do poder público, a mobilização social e o apoio dos moradores aos empreendimentos de gestão familiar que ofertam alimentos preparados também é um componente determinante na ativação das proximidades geográfica e organizacional para a construção da economia solidária no bairro. Há uma interação de apoios entre estes empreendimentos e grupos locais de mulheres, fundamentada na troca de saberes, trabalho e produtos.

Em 2020 foi criada a Comunidade Empreendedora da Economia Solidária (Coempes). Havia a necessidade das jovens do bairro que estavam desempregadas se associarem para gerar trabalho e renda. Foi decidido organizar um grupo para prestar serviços em festas e outros eventos. Cada integrante tem uma habilidade ou mais, como fazer doces, decoração, alimentos salgados ou trabalhar como garçonete.

Houve uma união de talentos. Trata-se de um grupo que trabalha somente no seio da comunidade. Ainda não atua em outros bairros por não ter como fazer o transporte de alimentos e materiais. Para superar a falta de equipamentos de conservação, uma integrante centraliza as comidas em casa por ter geladeira e freezer. O valor total arrecadado em cada evento é dividido de acordo com as regras estabelecidas pelo grupo, que é composto por 20 pessoas.

Além disso, a comunidade do bairro México 70 tinha uma horta que envolvia 20 pessoas e se encontra em fase de reconstrução, devido a uma reforma na escola que a abriga.

Considerando todas as práticas comunitárias do México 70, atualmente há cerca de 400 famílias envolvidas. Estas experiências nos mostram que o capital social da comunidade foi criado a partir de um grupo de mulheres que fundou e mantém as iniciativas econômicas solidárias.

Há a evidência da atuação de uma mulher, mãe, para criar a rede sociotécnica que viabiliza as ações coletivas. No entanto, é notória a ausência do poder público no seio da rede para que os trabalhos realizados não experienciem a precarização, como atualmente ocorre, apesar da presença do vínculo estabelecido em relações de dar – receber – retribuir entre os moradores.

Essas trocas instituíram o interconhecimento e o interreconhecimento constituintes do capital social, mas seu fortalecimento requer um mínimo de homogeneidade dos indivíduos e dos elementos que o constituem, inclusive o capital cultural e o econômico, o que demanda a ação institucional do poder público. Ressalta-se, porém, que a ausência de políticas públicas também é uma política pública.

Em 2019, foi aprovada na Câmara Municipal de São Vicente e sancionada pelo prefeito, a legislação que fundamentará as políticas públicas de economia solidária no município que, consiste, fundamentalmente, na criação de um centro de referência, do fundo de financiamento e custeio de atividades de apoio ao fortalecimento da EcoSol e a empreendimentos econômicos solidários, assim como de um conselho.

O resultado das ações com fundamentação no capital social criado pelo bairro do México 70, deve ser a porta de entrada dessa política, que somente será exitosa se for participativa e respeitar a lógica dos moradores e não a de governantes ou a de gestores de EcoSol.

O caso dos bairros Cota de Cubatão

Em 1939, foi iniciada a construção da Rodovia Anchieta, que liga a cidade de São Paulo à Baixada Santista, trouxe moradores de diversas partes do país, dando origem aos Bairros Cota: Cota 95/100, Cota 200, e Cota 400/500.

Estas denominações referem-se ao nível em que se encontram em relação ao mar. Outros fatores, como a construção da rodovia dos Imigrantes a partir de 1976, contribuíram para trazer novos moradores à região. Na crise dos anos 1980, a ocupação se intensificou e provocou impactos sociais e ambientais. A história da ocupação destas áreas pode ser conhecida com mais detalhes ao acessar o link https://youtu.be/wB-alXUJQX8.

Em 2007, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos moradores deste território e promover preservação ambiental, uma ação do governo do estado de São Paulo, Secretarias de Habitação e Meio Ambiente, que contou com investimentos do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, deu início ao Programa de Recuperação Socioambiental da Serra do Mar, operacionalizado pela CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo.

A intervenção compreendeu o atendimento a 7.265 famílias, sendo que cerca de 4.500 foram deslocadas para novas unidades habitacionais em outros bairros da Baixada Santista e o restante permaneceram nas áreas urbanizadas.

No entanto, os trabalhos desenvolvidos não se limitaram a intervenções no campo da engenharia civil. O maior desafio era transformar uma ação governamental vertical descendente em um projeto participativo em que os resultados fossem consequência de um processo pautado pela concertação, ou seja, pelo entendimento de todos os envolvidos quanto à necessidade das intervenções e que os projetos a serem desenvolvidos para as famílias que continuassem no território fossem pertinentes e conciliassem trabalho, geração de renda e valorização do meio ambiente.

Tratava-se de estimular a criação do capital social, por meio do engajamento cívico e estabelecimento de relações de confiança entre os integrantes da comunidade e destes com os técnicos, por meio de uma política pública. Havia famílias em áreas de risco que tiveram que ser transferidas para os apartamentos construídos pela CDHU, outras optaram pela transferência.

Assim, com as famílias que permaneceram no bairro definiu-se um conjunto de ações. Em um dos eixos do trabalho técnico social realizado concentravam-se as atividades de estímulo à participação, organização comunitária e debates sobre as possibilidades de implementação de projetos de desenvolvimento local.

O início dos trabalhos coletivos se deu com a realização de um curso de formação de agentes comunitários. Assim, começou a construção da interlocução entre gestores e comunidade com a problematização de temas como urbanização e protagonismo comunitário; memória, cidadania e comunicação comunitária; projetos de organização comunitária e desenvolvimento local e recuperação urbana.

Os agentes comunitários, representantes legitimados pela população por meio do Núcleo Operacional de Urbanização (NOU), órgão que tem a participação de gestores e representantes dos moradores, informam-se, discutem e acompanham os projetos executivos e as obras de urbanização, como: construção de muros de arrimo, escadarias, pavimentação de ruas etc.

Durante o curso de agentes comunitários, a partir da identificação das potencialidades e demandas sociais locais, originaram os denominados projetos sociais nos bairros Cota, que são iniciativas econômicas solidárias.

O projeto Comcom se volta à produção e gestão da informação comunitária, por meio de um jornal e uma rádio transmitida pela internet, divulgação da intervenção e dos projetos sociais e formação de moradores para operacionalização de equipamentos como filmadoras, máquinas fotográficas e mesmo o uso do smartphone, com o objetivo de difundir ideias e projetos locais nas redes sociais.

Além disso, produziram cartões postais com motivos do bairro. O Ateliê Arte nas Cotas, com a arte e educação promove a transformação do bairro urbanizado colorindo as fachadas das casas, dos muros e praças além promover geração renda a partir da arte produzida pelos moradores e aplicadas em produtos de papelaria, vestuário e artigos para casa. Há uma semelhança entre os desenhos dos muros e materiais produzidos, o que provoca um sentimento de pertencimento.

O Núcleo de Economia Solidária e Desenvolvimento Local (NESDEL) estimula a geração de renda por meio da valorização dos saberes. Este projeto foi materializado com a construção de uma cozinha, Sabores da Serra, administrada por um grupo de mulheres do bairro, que desenvolve iguarias com produtos locais.

O Cota Viva e o Varre Vila são projetos voltados à educação e preservação ambiental, inclusive com a construção de estufa para produção e comercialização de mudas.

Cada um desses projetos configura redes sociotécnicas que permitiram aos moradores o abandono de suas lógicas de vida individuais para se lançarem na construção coletiva.

Assim, por meio de uma política pública estimulou-se a criação do capital social e as pessoas se associaram conciliando a organização social com a economia e o ambiente. Destaca-se em todo o processo a atuação dos gestores da CDHU como os principais atores sociais que colocaram os moradores em relação, assim como com outros técnicos, para a construção de cada rede.

Com a urbanização em fase de finalização percebeu-se a vocação da comunidade para o Turismo de Base Comunitária, pois o local passou a despertar o interesse de diversos visitantes por suas belezas naturais, por seu valor histórico e pelos trabalhos desenvolvidos pelos moradores nos projetos sociais.

Assim, em 2015, por meio de uma parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp/São Vicente/SP), diversas ações de formação foram realizadas para estruturar o Turismo de Base Comunitária. Dessa forma, surgiu o Tur na Serra que representa a junção dos denominados projetos sociais, ou seja, das iniciativas econômicas solidárias.

As alianças estabelecidas pelos moradores com a universidade, a participação em cursos e palestras no Sesc de Santos, assim como a presença na feira de trocas organizada com aqueles eventos, e as palestras de integrantes do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista na sede do Ateliê, ampliaram a aprendizagem e o capital social do grupo.

Na rádio, os parceiros foram e são entrevistados pelos integrantes do projeto Comcom. Em 2019, participaram 2.012 visitantes do Turismo de Base Comunitária conhecendo aspectos históricos do bairro e os seis empreendimentos econômicos solidários.

Em 2019, depois de um processo de discussões e de formações, os integrantes dos projetos se uniram e criaram a Imaginacom, OSCIP que abriga as 36 famílias das iniciativas econômicas solidárias.

É importante ressaltar que em projetos de economia solidária há pessoas que participam e não se adaptam integralmente ao trabalho coletivo e outras que vão morar em outro local. No entanto, todas levam consigo os princípios e valores da EcoSol e os reproduzem de alguma forma em outras atividades e novos locais de moradia. Assim, os projetos também funcionam como espaços de educação não formal de construção da democracia.

Alguns fatores contribuíram de forma decisiva para as transformações observadas durante o processo de urbanização. Os princípios da EcoSol pautaram a organização interna e a relação entre os projetos. A solidariedade, cooperação, autogestão e participação democrática fundamentam as ações.

Além disso, o resgate histórico, a valorização da memória coletiva e dos saberes locais aumentaram a autoestima e fortaleceram os vínculos e a identidade comunitária. O que se percebe como resultado de um processo alicerçado na promoção da organização comunitária é a crescente autogestão dos projetos e, de forma geral, a emancipação das pessoas com aumento do capital cultural de cada um nas interações coletivas. Há, ainda, o fortalecimento do sentimento pertencimento que muda a relação com o bairro e com o município, fomentando o desenvolvimento local.   

A experiência dos bairros Cota foi executada pelo governo estadual e é concentrada em um território da cidade de Cubatão. Apesar de receber visitantes de diferentes regiões, não existe uma política pública municipal de apoio e fortalecimento da economia solidária.

Ensinamentos

Os dois casos abordados nos permitem tirar alguns ensinamentos:

– A economia solidária é uma forma de organização econômica que gera trabalho e renda e pode ser uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico para a Baixada Santista, com apoio de políticas públicas para o fortalecimento dos empreendimentos econômicos solidários formalizados, como associações e cooperativas, assim como os informais.

– O apoio governamental aos empreendimentos de gestão familiar também é de grande importância em um quadro econômico de desemprego crescente. Pode-se dar apoio para que passem a atuar de forma coletiva para a compra de insumos, comercialização, formação para a gestão, enfim, para que resolvam os seus problemas de forma conjunta, migrando para a economia solidária.

– As políticas públicas são de fundamental importância para o fortalecimento da economia solidária. É necessário que haja uma legislação municipal elaborada de forma participativa para respaldar as políticas. Alguns aspectos são indispensáveis, como financiamento para investimento e custeio dos empreendimentos. Afinal, nenhuma inovação social é adotada sem recursos. Além disso, deve-se ter um centro de referência com profissionais de apoio que sejam capazes de promover a construção de redes sociotécnicas e uma programação de formação continuada que contemple aspectos técnicos e do cooperativismo.

– Não cabe aos governos municipais se apropriarem dos projetos de EcoSol como se fossem obra governamental ou haver a atuação de gestores públicos que se sentem verdadeiros donos dos projetos e agem como se fossem patrões, reproduzindo as relações do sistema capitalista e impedindo a autogestão dos empreendimentos e a emancipação das pessoas.

– O poder público deve atuar onde já existe capital social construído ou agir para construí-lo com projetos pertinentes, ou seja, que sejam efetivamente participativos e tenham a ver com a realidade e necessidades dos moradores.

– A existência do capital social em determinada comunidade, ou seja, a capacidade de os moradores resolverem os seus problemas coletivamente, não dispensa as políticas públicas de apoio e fortalecimento da economia solidária, sob pena de os empreendimentos econômicos solidários estarem mais próximos do processo de precarização.

*Newton José Rodrigues da Silva, Francisca Eliene da Silva, Susana Santos e Alcielle dos Santos são integrantes do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista