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O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre.

(Adélia Prado)

Wellington está internado em seus derradeiros dias de vida devido a uma doença grave. Fez tratamento oncológico por cinco anos ficando relativamente bem durante a maior parte desse tempo. Há três meses sua clínica piorou e, na última semana, foi hospitalizado.

Na maior parte dos sete dias que se passaram, encontrou-se em um mundo onírico, parecendo estar sonhando. Conversou com quem estava ao redor e também com quem não estava. Muitas vezes parecia ter voltado para a própria infância, pedindo a bola ao colega de quadra ou ainda chamando o pai já falecido para alguma conversa cotidiana.

Minha percepção sobre sonhar é bastante ampla. Quando penso em sonhos, penso nas minhas noites dormidas, mas não somente nelas. Penso em aspirações, nas ilusões, em previsões e ainda nas alucinações…

Não costumo lembrar dos meus sonhos, diferente da minha mãe que se lembra e ainda interpreta os significados. Ela sonha muito com aqueles que moram “do lado de dentro”. No início da pandemia do coronavírus, ela sonhou com a minha bisavó acolhendo meus sobrinhos e se sentiu mais protegida durante aquele período vulnerável. Eu não. Dificilmente lembro dos meus e, quando acontece, em geral estou trabalhando, ou resolvendo, durante a noite, conflitos que se passaram na minha vigília. Na minha rotina diária acordo bem cedo. Desperto e as lembranças efêmeras logo se dispersam na primeira tarefa executada ao levantar.

Os sonhos podem ter diversas interpretações. Para Freud é composto pelos restos diurnos. É a realização de desejos, o acúmulo de experiências e de memórias para solução de problemas. Pode ainda aguçar a criatividade.

Nos desafios que a vida me propôs, quando fui inundada por medos e ansiedades, perdi o sono. Após o adoecimento e falecimento dos meus avós, períodos de insônia impactaram diretamente na minha personalidade e na minha alegria de viver. Mesmo não lembrando das minhas viagens noturnas, me percebi também sem encantos sobre a vida. A primeira coisa que motiva meus projetos pessoais é habitar sonhos. São nestes que começo a construção de uma realidade. Antes de algo existir concretamente, em geral já habitou meu mundo interior. As mudanças e os caminhos começam em meu pensamento.

O mundo tecnocrata não nos deixa com tempo de sonhar. Dormimos poucas horas, muitas vezes com auxílios de medicações. Despertamos cansados já pensando na próxima tarefa. E, depois de períodos desgastantes de trabalho, não conseguimos desfrutar das delicadezas do dia a dia, e perdemos muitas vezes a capacidade de desejar e planejar o nosso futuro.

No ano de 2018 fui para a Chapada dos Veadeiros no XVIII Encontro de Culturas Tradicionais. Participei de uma vivência chamada Aldeia Multiétnica em que convivi com etnias indígenas diversas. Conheci então o povo Xavante, vindos da aldeia Etenhiritipá, da Serra do Roncador na região Centro-Oeste do Brasil. Vivem em vastos campos abertos do cerrado em um lugar bastante remoto.

Os Xavante consideram muito mais os sonhos do que a própria realidade para interagir com o mundo, e fazem um uso consciente deles trazendo-os para as tomadas de decisão do dia a dia. Entendem a realidade como um desdobramento desse encanto. Por isso, um caçador dorme para entender o melhor local da caça. Existe ainda a função do sonhador, pessoa que é consultada para conceder respostas para a coletividade. Essa ferramenta é denominada por eles como tecnologia intuitiva.

Quais aspirações da minha vida se desdobraram? Ou quais foram esvaziadas no decorrer dela? Ainda carrego a generosidade delas? Saramago, escritor português, diz que “o sonho é um prestigiador hábil, muda a proporção das coisas e suas distâncias”. Fantasiar é uma ferramenta que deixa a vida mais leve, porque ela, às vezes, nos faz esquecer de como sorrir.

A esposa de Wellington não parecia assustada com o fato do marido estar conversando com o sogro já falecido. Quando a questionei sobre a compreensão do quadro em que ele se encontrava, percebi que ela entendia que ele estava morrendo. E complementou que os sonhos vieram amenizar a maior dor que eles poderiam estar sentindo. Que eles davam uma beleza para a partida.

Biologicamente falando, a medicina interpreta essas visões que ocorrem na proximidade do processo de morte como alucinações. O budismo tibetano interpreta essa fase como a dissolução do elemento ar. É um momento em que parece que vivemos num universo paralelo. Comum interagirmos com pessoas que já partiram, como se viessem nos acolher, nos mostrar que o ciclo da vida não termina.

Um dos papeis do cuidado paliativo é permitir uma vida ativa até o dia da morte. Adoecer e sonhar podem parecer paradoxos, mas podem coexistir, e o papel da equipe de saúde é contribuir para essa possibilidade. A aceitação da morte dá uma irradiação física e profunda que parece ser mais poderosa que do que o medo.

Ariadne era uma veterinária que aos 35 anos descobriu um câncer de estômago avançado e incurável, e na fase final de vida seu desejo era passar o tempo que tivesse ao lado dos seus animais. Durante as internações, um dos nossos maiores desafios era acolher o vazio da ausência de seus bichos de estimação.

Dentre os diversos sequestros que uma internação causa, a impossibilidade desse convívio é difícil de ser remediada. Ela conseguiu permanecer perto da natureza o maior tempo possível, e se dizia feliz a cada dia do lado do que lhe era sagrado, cada dia vivido era a concretização desse sonho.

Uma vez, ao conversarmos abertamente, me disse ter consciência de sua condição, e que suas ambições eram proporcionais às possibilidades que lhe eram cabíveis. E não havia alegria maior do que estar perto de seus cavalos.

Volto pra casa do trabalho, começo meu ritual noturno. Banho no escuro para ir me desligando dos estímulos de luzes, água caindo nas costas eliminando os problemas cotidianos. Me deito confortavelmente na minha cama e penso no que eu desejo sonhar. Talvez isso já seja um começo porque, afinal, carrego em mim todos os sonhos do mundo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista