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Economia solidária (EcoSol) pode ser definida como um conjunto de iniciativas socioeconômicas privadas de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito de natureza cooperativista e associativista, autônomas em relação ao Estado, fundamentadas na reciprocidade e autogestão.

A EcoSol representa a democratização da economia, pois os meios de produção são dos trabalhadores que, ao mesmo tempo, fazem a gestão. A extinta Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), que foi dirigida pelo professor Paul Singer entre 2003 e 2016, considerava que “a economia solidária compreende uma diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob formas de cooperativas, federações e centrais cooperativas, associações, empresas autogestionárias, movimentos, organizações comunitárias, redes de cooperação e complexos cooperativos. Envolve produção de bens, prestação de serviços, finanças, trocas, comércio e consumo”.

O presente texto tem como objetivo apontar algumas possibilidades para aqueles que queiram praticar a EcoSol e não sabem como fazê-lo. Considerando que dificilmente alguém assimila de imediato os princípios e valores que devem reger a organização dos empreendimentos econômicos solidários, como valorização social e promoção da dignidade do trabalho humano; solidariedade em forma de reciprocidade; justiça social; democracia; gestão dos empreendimentos feita pelos próprios membros; relação de respeito com a natureza; diversidade cultural política, social, racial, religiosa e de gênero; emancipação do ser humano, valorização dos recursos e conhecimentos locais e aprendizagem permanente, há a necessidade de passarmos por um processo que será denominado de transição solidária.

A transição solidária é uma forma de praticar a economia solidária de forma paulatina, adquirindo conhecimento sobre o tema e, principalmente, envolvendo-se nos empreendimentos econômicos solidários.

A educação no sistema capitalista, historicamente, teve o objetivo de formar os trabalhadores para obedecer ordens, realizar um trabalho alienado sem participação em todo o processo de produção, sobretudo na gestão das empresas.

A partir do final da década de 90, a orientação educacional orquestrada em todo o mundo tem o objetivo de convencer o trabalhador a acreditar que pode ser empreendedor de si mesmo e trabalhar sem qualquer vínculo empregatício para grandes empresas ou estar com um pequeno negócio também na informalidade. O modelo clássico emprego/salário é substituído por uma outra relação, com maior exploração do trabalho, sem direitos e muitas incertezas. 

Observa-se que após 250 anos de implantação do sistema capitalista e a sua consolidação, a despeito das diversas crises que já atravessou e atravessa, o bombardeio feito pela mídia vinculada às classes dominantes, também conhecidas como elites, é que nascemos para competir e não cooperar, ao contrário das evidências já apontadas por Charles Darwin na Origem das Espécies e Piotr Kropotkin em Apoio Mútuo: um fator de evolução.

O chamado “darwinismo social”, termo criado pelas elites para naturalizar o aniquilamento dos pobres por serem considerados fracos e incompetentes para o empreendedorismo no sistema capitalista, não tem qualquer correspondência na evolução do ser humano.

Assim, serão apontadas algumas experiências em que os trabalhadores podem se associar para trabalhar ou que podem fazê-lo de outra forma, como consumidores conscientes por exemplo, como uma transição para incorporar a economia solidária como forma de organização econômica e modo de vida.

Será abordada, ainda, a necessidade de os governos municipais iniciarem um processo de apoio aos empreendimentos econômicos solidários com políticas públicas.

Como para a maioria dos governos essa experiência é nova, necessita-se, também, de transição solidária. Afinal, a solidariedade da economia solidária deve ser integral, pois tem que se expressar em forma de reciprocidade entre governos e integrantes de empreendimentos econômicos solidários, entre os integrantes dos empreendimentos e destes com os clientes dos serviços e produtos que, por sua vez, também devem ser solidários.

Em janeiro de 2020, mais de 40 trabalhadores pediram demissão de uma empresa terceirizada da Petrobras por falta de pagamento de benefícios, ou seja, houve redução nos ganhos e precarização do trabalho. Eles não se submeteram à uma exploração ainda maior e optaram por manter a dignidade.

Trata-se de um fato inédito, pois comumente os trabalhadores optam pela greve como última forma de luta para garantir seus direitos. Seja na vida ou em filmes como Germinal ou Os Companheiros, com Gérard Depardieu e Marcelo Mastroianni, respectivamente, as agruras daqueles que vendem sua força de trabalho ao parar suas funções não são pequenas. O pão que já faltava passa a ser mais escasso ou desaparece da mesa das famílias daqueles que mantêm a sociedade viva, em funcionamento. Falta de alimentos, de dinheiro para o transporte e manutenção dos filhos se evidenciam. No entanto, estamos falando de um caso em que não era uma greve, os trabalhadores não quiseram se submeter à humilhação e se demitiram. 

No calor dos fatos que envolviam o pedido de demissão, representantes de dois sindicatos fizeram contato com integrantes do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e houve uma reunião com aqueles trabalhadores.

A questão a ser respondida era: há solução por meio do cooperativismo para esses trabalhadores terem postos de trabalho e renda para viver?

Estavam presentes na reunião integrantes da Cooperativa de Trabalho Cipó Educação, com sede em Santos. São oito professores que criaram uma cooperativa de trabalho. Foi explicado para os trabalhadores demissionários que é possível ter um posto de trabalho sem vender a mão de obra para uma empresa capitalista ou ser servidor público. Eles teriam que formar uma cooperativa de trabalho e todo o processo foi explicado pelos cooperados da Cipó, ou seja, por aqueles que já trilharam o caminho e conhecem obstáculos e oportunidades. A Lei 12.690/2012 estabelece que este tipo de cooperativa pode ser formada com um mínimo de sete trabalhadores. Considerando que no grupo havia profissionais com diferentes competências, poderiam assumir trabalhos considerados de menor ou maior porte. Mesmo que uma determinada demanda não atendesse a todos, mas somente parte do grupo devido às necessidades dos serviços, ainda seria melhor estarem juntos, pois um potencializa o outro, cria oportunidades.

O grupo dos trabalhadores não adotou a ideia de construção de uma cooperativa de trabalho, ou seja, da autogestão. Caso adotassem, eles mesmos passariam a divulgar os serviços que prestam, realizariam os trabalhos de acordo com o planejamento que fariam, assim como estabeleceriam preços, organizariam compras, a divisão do dinheiro seria por decisão coletiva, definiriam as regras para que cada um tivesse férias anuais e a contribuição para o abono de natal, que na relação patrão/empregado ou Estado/servidor público se chama décimo terceiro.

A decisão de migrar da condição de empregado de uma empresa capitalista, condição de quem recebe ordens para realizar um trabalho específico, para ser integrante de uma cooperativa e assumir junto com os demais cooperados a sua gestão e responsabilidade pelos resultados não é um fenômeno automático.

Afinal, fomos educados pelo sistema para competir, a sermos empregados, a objetivarmos um emprego em uma empresa capitalista ou a prestarmos concursos para o serviço público. Recentemente, inventaram a ideia de que um trabalhador desempregado tem insucesso por não ser empreendedor e muitas pessoas a incorporaram como um jargão, sem qualquer reflexão. Assim, o próprio sistema capitalista se fortalece no cotidiano com base no comportamento das pessoas que explora.

Os 40 trabalhadores que pediram demissão tiveram um ato de coragem para que não fossem ainda mais explorados pelos empresários, mas não conseguiram dar um passo adiante para se tornarem responsáveis por uma organização autogestionária, a cooperativa de trabalho.

A opção pela autogestão deve ser resultado de formação, que deveria começar nas escolas e estar nas atividades de todos os movimentos sociais. O machismo, o racismo, a exploração de homens e mulheres, neste caso até com duas ou três jornadas de trabalho por dia, além da predação dos recursos naturais até o seu esgotamento, são aspectos que mantém o sistema capitalista em funcionamento.

Assim, a formação para a EcoSol deveria ser assumida também por todos os movimentos sociais identitários pelo fato de ser agregadora de todas as lutas. A autogestão em si já é uma forma de educação no cotidiano, na prática, de homens e mulheres para a realização das mudanças estruturais que o Brasil necessita.

Há experiências em escolas públicas e privadas que abordam a EcoSol como forma de organização econômica e de vida. No entanto, segundo Henrique Tahan Novaes, em seu livro Mundo do Trabalho Associado e Embriões de Educação para Além do Capital, as lutas educacionais do século XXI deverão criar sistemas independentes e paralelos do Estado e, ao mesmo tempo, revolucionar o sistema educacional estatal.

Neste caso emerge o problema referente à formação conservadora de vários professores e o fato de muitos serem trabalhadores temporários, tendo que ministrar aulas em diversas escolas, o que já prejudica as condições de trabalho.

Para abordar a EcoSol nas escolas deve-se contar com professores que pensam uma educação para além do capital e que adotam um currículo com base na problemática territorial.

As organizações não governamentais (ONGs) também devem direcionar a formação para a autogestão e não centralizar a gestão dos projetos financiados por agências em territórios com grande vulnerabilidade social com metodologias difusionistas, pensadas e executadas de cima para baixo, ou seja, sem instância de participação, de um expert para a comunidade.

Comumente, esse tipo de ação contribui para manter esses territórios com baixo capital social e promove ao seu fim frustração, decepção e desânimo. Esse fato, provavelmente, cria condições para eternizar as ONGs como instituições de captação de recursos e, evidentemente, a pobreza.

A transição solidária também deve ser assumida por essas organizações, com a adoção de metodologias construtivistas, fundamentadas na participação, e que empoderem os integrantes das comunidades, lhes proporcionando condições para a autogestão.

Os sindicatos e centrais sindicais deveriam preparar os trabalhadores para a autogestão com programas de formação, visto que podem prestar serviços de forma associada de não estiverem mais vinculados às fábricas ou recuperar empresas que faliram.

As associações de moradores poderiam se engajar nos processos de formação firmando parcerias com as escolas e propor às prefeituras que cooperativas locais façam os serviços de zeladoria dos bairros.

Todas as ações de formação podem ter o apoio do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista que já promove cursos, palestras, lives, debates e apoio técnico e organizacional por seus integrantes de forma voluntária.

O sonho dos brasileiros em ter um bom emprego em uma empresa capitalista ou no serviço público devido à segurança que, em tese, geraria está comprometido para a maioria da população, visto que a desregulamentação das leis trabalhistas, com aumento da precarização e a perda de direitos pelos servidores públicos com a sua condenação por parte da mídia e governos neoliberais que os responsabilizam pelas mazelas do sistema.

Esses aspectos fazem parte de uma estratégia de acumulação do capital pelas classes dominantes. Assim, é recomendável que os trabalhadores se unam para eles próprios resolverem o seu problema de desemprego, criando postos de trabalho com base no associativismo e no cooperativismo.

Por este meio os trabalhadores podem resolver outros problemas que o sistema capitalista lhes impõe. Há pessoas que não querem consumir alimentos produzidos com fertilizantes químicos e agrotóxicos e que de preferência tenham origem na agroecologia, que exige práticas ancoradas na sustentabilidade ambiental e solidariedade em forma de reciprocidade no compartilhamento de conhecimentos e distribuição dos alimentos. Esses aspectos fortalecem a soberania alimentar.

Em todo o Brasil surgem grupos de consumidores conscientes que fazem parcerias com agricultores familiares que produzem orgânicos e/ou praticam a agroecologia, como a Rede Livres de Produtores e Consumidores Conscientes de Santos, que inclusive faz entregas dos produtos solicitados com entregadores cooperados e não explorados pelo Uber ou Ifood.

Na Baixada Santista há, ainda, feiras do produtor em Peruíbe, Itanhaém, Mongaguá e Santos. Em Peruíbe, há também o Coletivo de Agricultores Familiares Morro das Panelas, que oferta toda a semana produtos orgânicos e da agroecologia.

Em Itanhaém, há uma barraca drive thru com produtos de oito agricultores familiares. 

No município de Bertioga, há o Coletivo Banana Verde que faz entregas em domicílio de produtos da agricultura familiar. Em Cubatão, nos bairros Cota, há o Sabores na Serra, que comercializa compotas e organiza coffee breaks.

Caso estes grupos não disponibilizem determinado produto, pode-se adquirir apenas o que é ofertado. Neste caso, já se trata de uma prática de transição solidária e de contribuir para a dinamização da economia local.

Além disso, 14 comunidades tradicionais da Baixada Santista, indígenas e caiçaras, recebem visitantes como prática do turismo de base comunitária. Para que essa atividade gere renda, as comunidades tradicionais devem se empenhar para fortalecer os aspectos culturais e melhorar o próprio lugar onde vivem.

Assim, o retorno não se limita ao dinheiro arrecadado, mas ao bem-estar que promove para si e visitantes, que adquirem mais conhecimento e contribuem para fortalecer a etnodiversidade na região. Há outras experiências, como a Lavanderia 8 de Março, em Santos; a União de Mulheres Produtoras da Economia Solidária de Peruíbe, que se dedicam à panificação, costura e artesania.

Em Cubatão, também há o Ateliê Arte nas Cotas, que produz roupas diferenciadas de extremo bom gosto e acabamento, a produtora de audiovisual autogestionária Sirifilma.

Na Baixada Santista, em seus nove municípios, há diversos grupos autogestionários de cultura e cooperativas de catadores de materiais recicláveis, que prestam um inestimável serviço à sociedade e, de forma geral, não têm o reconhecimento devido por parte dos governos municipais, que pagam às grandes empresas para realizarem coleta e não aos catadores. 

Os empreendimentos de gestão familiar também podem se associar para realização de compras conjuntas, comercializar em grupos, criar Fundos Rotativos Solidários para autofinanciamento das suas atividades sem precisar se submeterem às taxas exorbitantes de serviços e juros dos bancos tradicionais. Essas práticas também são formas de fazer a transição para a economia solidária.

Assim, todos podem escolher uma dessas opções para iniciarem um processo de transição solidária, seja como prestador de serviços, produtor associado ou como consumidor. Paulatinamente incorpora-se outras práticas, mas o importante é começar.

A ausência de políticas públicas de apoio e fortalecimento da EcoSol por parte dos governos federal e do estado de São Paulo é a própria política pública, pois não possuem compromisso em apoiar os trabalhadores para criarem e integrarem empreendimentos autogestionários ou o fortalecimento das comunidades tradicionais.

Esses governos optaram por favorecer as empresas capitalistas com as suas ações e apoiam medidas que promovem perdas aos trabalhadores dos setores público e privado e valorizam o Estado policial e não o Estado educador, aquele que ao longo do tempo promove a inclusão socioeconômica por meio do conhecimento e do apoio ao trabalho associado.

Em relação à maioria dos governos municipais, a lógica é a mesma e fica evidenciado, por exemplo, o espaço que ocupam as empresas de terceirização que comumente atuam sob muitas críticas da população devido à má qualidade e custo elevado de serviços públicos que oferecem.

Por que esses governos temem a organização da economia pela autogestão dos trabalhadores e não têm políticas públicas de apoio e fortalecimento da EcoSol?

Poderiam elaborar e implantar programas e projetos de forma participativa e paulatina para que também fizessem uma transição solidária, com o objetivo de construírem as políticas públicas com base no acúmulo de experiências. 

A EcoSol, por meio da autogestão, é mais que a resistência e luta contra a hegemomia de um sistema que promove imensas desigualdades sociais e avança sobre os modos de produção que não se caracterizam pela exploração do trabalho, como aqueles dos territórios indígenas e quilombolas, para incorporá-los, destruindo as relações horizontais e a geração de trabalho e renda nas comunidades, de acordo com as suas necessidades e culturas. A autogestão é sobretudo um processo que possibilita aprendizado para a construção de uma outra sociedade, com democracia econômica e sociodiversidade.

Para todas e todos que ainda não praticam a EcoSol, fica o convite para iniciar o processo de transição solidária para a construção de uma outra economia e para acompanhar as atividades do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista nas redes sociais: no Facebook e no YouTube.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista