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A festa de Réveillon de 2020 foi íntima e caseira. Somente nós e as crianças, em nosso apartamento, que viria a ser vendido meses depois. Compreendíamos que aquela poderia ser a última virada de ano que passaríamos juntos, mas isso não sequestrou nossa alegria.

Pouco antes da meia-noite fomos à praça do aquário olhar a queima de fogos. Houve épocas em que Lia não queria de jeito nenhum ficar na Baixada para as festas. Mas isso mudou. Nos seus dois últimos anos de vida, depois do diagnóstico de câncer, foi em Santos que ela escolheu estar.   

No dia 1º, despertou feliz e animada, e escreveu um texto lindo em seu diário:

“O novo baile

‘Tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis!’
Dia de sol. Noite afetiva, com meus amores Rodrigo, Júlia e Francisco.
Manhã de amor. Estou viva.
Vivo e celebro a generosidade do universo.
Agradeço por tudo o que amo
Respiro com prazer.
Gozo com o ar, com a luz, com o toque do lençol no meu corpo nu.
Ouço a água do chuveiro onde você se banha.
Não existe medo.
Não existe dor.
Aqui mora o amor.

Feliz ano novo!”

Assim que saí do banho citado no poema, ela propôs jogarmos o Oráculo da Deusa, um baralho de autoconhecimento que usava em suas oficinas de escrita. Não me recordo a deusa que ela tirou. Tenho a sensação de que foi Afrodite. Ou melhor, uma deusa nórdica, de um nome difícil de pronunciar. Procurei para ver se há algum registro sobre isso em seus escritos, mas não encontrei qualquer menção.

Eu tirei a deusa xintoísta Ame-no-Uzume, que nós não conhecíamos, mas se tornou uma boa companhia desde então.

Uzume é a deusa do riso, a representação total da alegria. Uma das principais histórias que se conta sobre ela também envolve Amaterasu, a deusa do sol e do universo. Infeliz com algumas atitudes de seu irmão Susanoo, Amaterasu resolve se esconder em sua caverna e não sair mais, o que faz com que o dia não volte a nascer. Isso praticamente destrói o mundo, que fica condenado à escuridão.

Outros deuses, para contornar o problema, criam um plano e convocam Uzume para executá-lo. Eles se reúnem na porta da caverna onde se escondeu Amaterasu e lá a deusa do riso começa a dançar, de forma jocosa, expondo seus peitos, fazendo com que todos gargalhem.

Amaterasu, curiosa com o que está ouvindo, resolve olhar para fora da caverna e também cai na gargalhada, tal era a graça da deusa brincalhona. Seu deslocamento para a porta da caverna permite que os outros deuses a coloquem diante de um espelho, onde vê refletida uma belíssima mulher, que é ela mesma. Atraída pela imagem, deixa a caverna, e o sol volta a brilhar.

Essa lenda explica bem o poder de Uzume. A força do riso e da alegria move o mundo, fazem com que o sol – nesse caso “a sol” – saia de sua caverna para parir o dia. Sem alegria, nada brota, viceja, evolui, prospera.  

Eu e Lia rimos muito com a história da bufona com que o Oráculo da Deusa nos presenteou. Em nossa leitura do significado da carta, concluímos que lhe banhar de alegria havia sido um de meus papéis em sua vida. E que, obviamente, ela era minha Amaterasu, a luz dos meus dias, uma deusa belíssima que gostava de ter uma caverna para se esconder e que por vezes precisava ser resgatada. Tenho pra mim que, se seu tempo neste plano fosse mais longo, Lia haveria de se tornar peregrina.  

Em uma de nossas últimas desavenças, um mês antes de sua morte, nossos diálogos de WhatsApp registram que lhe mandei um vídeo recordando a história da deusa xintoísta da alegria, junto com uma frase de Osho:

“Vive num mundo sem pensar no que vai ocorrer. Dá na mesma ganhar ou perder. A morte leva tudo. Que ganhe ou que perca carece de importância. Só importa, e sempre foi assim, como o jogo foi jogado. Aproveitou do jogo em si mesmo? Então todo momento é um momento de alegria”.  

Lia, sem deixar o mundo, havia se retirado dele. Recolhida em sua caverna, manifestava desconforto com os sons da alegria. Afinal, ela estava imersa em sua paciente e amorosa espera pelo momento fatal. Procurava se alimentar, meditar, respirar, tudo lentamente, porque qualquer esforço a desestabilizava. Assistia a filmes, ouvia alguma música, pintava borboletas, paisagens, plantas e flores, conversava com seus familiares, e ansiava por silêncio, paz, aconchego.

Eu, filho da cólera, desviado por Deus, cuspe de um anjo anárquico, precisava silenciar porque queria respeitar sua vontade, mas não sabia como. E Uzume, eu pensava? O riso e a alegria que convocam à vida? Esse não é meu papel?

Meu erro, se é que houve um, foi não entender que nada mais poderia ser feito para tirá-la da caverna onde jazia, como fera ferida. Em minha defesa, digo que meus atos eram apenas o movimento inercial do desespero, alimentados pelo medo da perda iminente da mulher que eu amava e queria ter a meu lado eternamente. Ela sabia disso, mas já não podia mais ser compreensiva. Eu não queria aceitar.   

Voltei a pensar em Uzume semana passada, quando percebi que meu reservatório de alegria havia secado. Drenado, não consegui escrever. Achei até que não escreveria nunca mais. As palavras, que têm me acompanhado como carpideiras do meu luto, sumiram. A bem da verdade, escrevi uma longa carta, mas não quis publicá-la. Era uma carta apenas para Lia, mas não sei se ela tem acesso à internet do lado de lá. Mesmo assim a enviei, na expetativa de um dia receber uma resposta. 

Por que minha voz sumiu?

Porque estou reconhecendo, aos poucos, que parte das respostas que preciso para seguir adiante só encontrarei no silêncio. Isso não significa deixar de escrever, cantar, dançar, gritar até. Significa aceitar quando nada disso se faz necessário.

À medida que o tempo passa, o abismo vai se tornando maior: a ausência se torna mais presente, nada parece dissipar a dor, a existência se torna um fardo pesado de carregar. Pode parecer autocomiseração, e talvez seja. Uma grande ilusão? Sem dúvida. Mas é como tenho me sentido. E é simples de entender: muito daquilo que um dia foi alegre, porque partilhado entre nós, torna-se anódino, porque ela não está. Das coisas mais corriqueiras, como deitar-se para dormir e não ter mais aqueles pés com os quais se enroscar; às mais complexas, como criar os nossos filhos, contando apenas com alguma ajuda da família e da escola, que segue em ensino a distância.

Sempre conversávamos sobre a estupidez da vida moderna burguesa, que preconiza como padrão um modelo baseado na bolha formada por pai-mãe-filhos-bicho de estimação, em uma casa própria, cercada por muros. Ambicionávamos viver em comunidade, ao lado de outras pessoas, partilhando os cuidados, em uma teia mais colaborativa de afetos e responsabilidades. Essa foi uma das muitas ideias que tínhamos que ficou pelo caminho e agora não sei exatamente o que fazer com ela. Me persegue a sensação de que tudo se resolveria se ela ainda estivesse aqui. 

Em meu diário, no mesmo dia 1º de janeiro, escrevi:

“Eu não quero mais viver com medo de perdê-la, de não ter mais tudo isso que tanto amo, porque esse medo limita a experiência do que realmente existe: o agora. Tirei a deusa Uzume no Oráculo da Deusa, aquela que com o riso consegue acessar a mais poderosa divindade. Dominar toda essa energia vital que me habita é o desafio de 2020. Não jogar fora o que eu tenho de mais potente. Aprender a me fortalecer e assim poder cuidar melhor de quem eu amo”.

Esse segue sendo meu desafio, impossível de realizar se eu não me recolher à minha caverna. Todo esse barulho que produzo dentro de mim e se irradia a meu redor precisa diminuir para que eu consiga compreender e aceitar a solidão. Algo me diz que só assim reabastecerei meu reservatório de alegria.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Rodrigo Savazoni
Jornalista, escritor e produtor cultural. Um dos fundadores e atualmente diretor-executivo do Instituto Procomum. Cursa doutorado em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e tem alguns livros publicados no Brasil e no exterior. Vive em Santos, com seus dois filhos.