Para Paul Singer, “a economia solidária foi uma inovação social em sua origem e logo se tornou fonte de outras inovações sociais” – Foto: Reprodução

No século XXI a humanidade enfrenta o desafio de não ser extinta devido à degradação ambiental do planeta, promovida pelas consequências do sistema econômico hegemônico. Desde a sua origem, a partir da Revolução Industrial, o capitalismo gera desigualdades socioeconômicas e exploração dos recursos naturais de forma desenfreada.

Ao longo do tempo, com a evolução tecnológica e aperfeiçoamento da exploração inata ao sistema, aumentaram os impactos negativos sobre os humanos e não humanos.

Entretanto, se por um lado aumentou a complexidade da organização social com a emergência do capitalismo e das suas mazelas, por outro, também emergiram grupos de pessoas que questionavam o modelo de desenvolvimento em curso e lutavam por mudanças com o objetivo de melhorar a vida coletiva, com base na reforma do sistema ou na sua substituição por outro, que promovesse justiça social e respeito ao meio ambiente.

Esse tipo de ação na sociedade ficou conhecida como ativismo ou militância política. Neste texto será considerado o termo militância, por ser mais utilizado. Esta palavra tem origem no latim militantia, particípio de militare, servir como soldado.

Originalmente, seu uso principal era eclesiástico, para referir-se a um militante da Igreja, segundo os colaboradores do site origemdapalavra.com.br. Há pessoas com posicionamento de esquerda que preferem usar a palavra ativismo, devido ao sentido militar na origem do outro termo.

Por outro lado, militância é identificada pelas pessoas com posicionamento de direita como um comportamento nefasto. Assim, evidencia-se melhor o que representa militância, utilizando este termo pelo fato de estar inserido em um cenário de luta de classes.

A militância política em partidos progressistas e movimentos sociais é, portanto, resultado de necessidades de mudanças a serem realizadas. Entende-se como movimento social a mobilização coletiva que se opõe às formas de dominação social instituídas responsáveis pelas desigualdades socioeconômicas, racismo estrutural, exploração das mulheres, feminicídio e degradação do meio ambiente.

Pode-se considerar que existem diferentes formas de militância e objetivos. Com a intenção de esclarecer o que é a militância política, que objetiva transformar a sociedade, foi feita uma consulta a pessoas que se consideram militantes para que conceituassem o termo.

Assim, pode-se tirar ensinamentos para a compreensão e aperfeiçoamento do ato de militar, segundo visões de pessoas da Baixada Santista com diferentes idades que atuam em partidos políticos, movimentos sociais ou em ambos e em áreas diversas.

A militância política se reveste de grande importância, não somente pela atual situação do planeta, mas também pelo quadro que vivemos no Brasil, com a desregulamentação das leis ambientais e trabalhistas, aumento do desemprego, da inflação e da miséria, emergência do ódio explicitado de diferentes formas contra as causas coletivas e seus militantes, negacionismo da ciência, crescimento da violência contra homossexuais, mulheres, negros e indígenas, desmonte dos serviços públicos, aumento da população em situação de rua e culto ao individualismo calculista e egoísta do Homo economicus.

Em tese, há somente uma forma de frear esses aspectos que lançam o país na barbárie: a mobilização dos militantes dos partidos políticos progressistas e movimentos sociais em um processo de atuação com unidade, educativo, que envolva a população, sobretudo, àquela dos segmentos pobres que residem nas periferias e nas áreas rurais e sofrem com o atual quadro socioeconômico e ambiental.

Assim, militar é preciso ou a vida perde o sentido para todos aqueles que conseguem ser felizes somente no coletivo, com propósitos humanistas. Deve-se considerar ainda que, segundo o filósofo Bruno Latour, as elites obscurantistas, também conhecidas como classes dominantes, entenderam que o planeta não comporta o atual padrão de vida e acumulação que adotam e mais todas as formas de vida dos demais habitantes, mesmo que modestas e mesmo miserável. Assim, a solução seria se livrarem dos pobres por meio da necropolítica e terem o planeta somente para si.  

Mesmo considerando a importância da militância política, a sua compreensão é diversa, mesmo entre os militantes, devido às diferentes formas e condições que é exercida. Para obter a percepção do que seja foi elaborada a seguinte questão, respondida por 15 militantes: você poderia conceituar o que é militância?

É importante registrar que a maioria dos entrevistados reagiu com surpresa à pergunta: “preciso pensar, apesar de me considerar um militante”. Destacam-se algumas respostas que são importantes conceituações que podem nos orientar.

“Militância para mim é escolha de vida, é pertencimento social em relação à emergência da efetividade dos direitos humanos. Militar é ação de todas e todos que têm causa, projeto de vida. Militar é viver plenamente e não aceitar passivamente a imposição de vida que um grupo, uma camada social de privilegiados impõe a todos os demais. Por fim, acredito que militar se tornou urgente, pois a vida humana no planeta Terra está ameaçada”.

“A definição de militância strictu sensu passa pela prática organizada e disciplinada em busca de um objetivo social. Por exemplo, uma reforma urbana na luta por moradia, ou agrária na luta pela terra, por uma economia autogestionária e sem exploração, como na defesa da economia solidária. Ser militante, portanto, também incorre em organizar essa luta de forma coletiva dentro de instituições militantes, como os coletivos e movimentos – que costumam ser setoriais – ou nos partidos políticos: instituições que, apesar de sofrerem um desgaste, têm o desafio de ser um guarda-chuva de lutas, tendo uma visão global, sistêmica da multiplicidade de demandas da sociedade. Ser militante é praticar ações transformadoras contra mazelas socialmente estabelecidas e muitas vezes aceitas como naturais. Portanto, por mais que negue, todo militante é movido pela esperança”.

“Penso ser a ação direta a favor da comunidade onde estamos inseridos. Identificamos necessidades, injustiças, discriminações, e partimos para a ação, que pode incluir o protesto, ou seja, se posicionar sobre um acontecimento, ou a ação efetiva, inclusive a desobediência civil quando a lei é injusta. Envolve identificar também nossas ferramentas pessoais que podem ser colocadas a serviço desse coletivo, nossos privilégios, inclusive, em conhecimento, em espaços de fala, em capacidade econômica”.

 “Militância é o ato de ser politicamente ativo a favor de uma causa, um ideal, é ser agente político das transformações na sociedade que desejamos, é defender uma causa e ser combativo ao velho mundo que não nos serve mais.  Acho que para alguns, principalmente nós, pessoas pretas e pobres, é a busca por sobrevivência. Uma vez que somos acometidos à injustiças assim que nascemos e assaltados de nossos direitos e humanidade, lutar, isto é, exigir mudança e trabalhar para construir outras realidades é a consequência de existir no mundo em que vivemos”.

“Militância é uma opção necessária de vida para juntar gente para a luta, para as transformações também necessárias em sociedades opressoras e exploradoras. Existe uma diversidade de atuação militante em cada território e momento histórico. A militância pressupõe atividades individuais e coletivas, atividades de estudos e de ação. A militância hoje no Brasil também pressupõe militância autônoma e outras não tanto, pois são relacionadas às instituições mais ou menos formais, como sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais e as chamadas ONGs, várias destas como militância assalariada, o que pode também interferir na autonomia militante”.

 “Militância acontece quando o indivíduo se envolve em uma causa com o objetivo de transformar a realidade social, econômica, política e ética, onde o interesse coletivo sobrepuja o individual. Este indivíduo, o militante, pode ou não se filiar a um grupo, mas seu engajamento na causa sempre é pessoal, ativo, estratégico e de longo prazo. O militante compromete seu tempo, talentos, conhecimentos e esforços nesta atividade, e busca incrementá-los, ou seja, aprende enquanto atua, para poder atuar mais e melhor. Mesmo que não haja uma efetiva mudança social no tempo de atuação do militante, há sempre uma transformação pessoal como consequência da experiência”.

“Militância é estar comprometido permanentemente com uma determinada causa, de forma consciente e a partir da busca incessante pela verdade e pelo conhecimento, que vai além de pertencer a um partido político, a uma religião ou a uma dada profissão, muito embora alguns elementos se misturem nessas instâncias. Creio que a militância se materializa em iniciativas coletivas, voltadas à defesa de direitos, na luta contra desigualdades e preconceitos e pela busca incessante da conquista de justiça social. Em todas essas circunstâncias há sempre de se efetivar o reconhecimento da dignidade humana presente em todos e em cada um de nós. Um alerta importante: não podemos transformar nossa militância, crenças e valores em dogmas, como se fôssemos donos da verdade. E muito menos fazer de nossa militância uma prática de messianismo e de fanatismo”.

“Para ser um militante não basta lutar, defender ou apoiar uma causa e estar em atos isolados ou pontuais. É necessário, é essencial estar junto, construir e organizar coletivamente as direções de uma luta”.

“Se Aristóteles dizia que ‘nossas excelências é que devem nos unir’, a militância me ensinou isso: tu olhas para o lado e enxergas nos olhos da outra pessoa, mesmo que seja alguém que você nunca viu na vida, todas as dimensões do futuro justo e igualitário que construiremos e pelo qual lutamos a cada respirada, dia após dia. Militância é luta, esperança, um calor gostoso dentro do peito. Aquela sensação de que estou do lado certo e construindo a história. E isso não tem preço”.

“Aprendi junto com a pastoral da juventude, na década de 90, que a militância inicia com comprometimento e engajamento, ou seja, um chamado da sociedade para olharmos a necessidade do semelhante como nossa, inspirando-se em um capítulo do Evangelho Mateus 5, que nos compara ao Sal da Terra, Luz do Mundo, ou seja, precisamos  dar sentido o tempo todo para nossa curta existência”.

Ao analisarmos a militância política no Brasil, pode-se constatar que há características de como é exercida, de acordo com o momento histórico. Houve o período em que o Partido Comunista Brasileiro era a principal referência dos militantes das causas populares. Posteriormente, houve diversidade de grupos que militaram inclusive pegando em armas pela reconstrução da democracia.

Adiante, as Comunidades Eclesiais de Base contribuíram para a formação de muitos militantes dos movimentos sociais, o Partido dos Trabalhadores se tornou a principal referência no campo da disputa parlamentar e do executivo, assim como houve a emergência de movimentos ambientalistas organizados principalmente por ONGs.

Atualmente, a militância política com as características descritas pelos entrevistados é exercida em diferentes movimentos sociais, principalmente identitários, e também vinculada a partidos progressistas. Portanto, está pulverizada.

Porém, todas as percepções descritas têm algo em comum que pode ser definido na frase de Frei Betto: “O militante aprofunda seus vínculos com o povo, estuda, reflete, medita; qualifica-se numa determinada forma e área de atuação ou atividade, valoriza os vínculos orgânicos e os projetos comunitários”. 

Considerando todas as lutas dos militantes políticos e as características apontadas do que é militância, o movimento de economia solidária (EcoSol) é agregador, pois une as causas, sejam elas ambientais, econômicas, sociais, feministas, antirracistas, democráticas e requer ação coletiva com aprendizado constante.

A EcoSol é mais do que uma forma associada dos trabalhadores para prestar serviços, produzir, poupar e consumir de forma consciente. O processo de construção e a prática da autogestão exige relações horizontais, democráticas, construídas com base na reciprocidade.

Assim, é necessário que ocorra mudança de comportamento daqueles que fazem a EcoSol nos empreendimentos econômico solidários, elaboram e executam políticas públicas, realizam estudos ou apenas a apoiam ideologicamente. Afinal, há um bombardeio diário pelos meios de comunicação tradicionais de que ser individualista é uma virtude e que influencia muitas pessoas.

A EcoSol se expressa por uma totalidade de empreendimentos econômico solidários e organizações que privilegiam objetivos além da renda, como fortalecimento das relações sociais, redução das desigualdades socioeconômicas e preservação do meio ambiente. Trata-se de uma organização para além do capital, como cita o filósofo húngaro István Mészáros.

A militância no movimento de EcoSol agrega todas as pautas dos demais movimentos e se articula com os partidos políticos para que seja fortalecida como políticas públicas, a partir da ação dos seus representantes eleitos. Para Paul Singer, “a economia solidária foi uma inovação social em sua origem e logo se tornou fonte de outras inovações sociais”.

No entanto, em qualquer movimento deve-se estar atento, vigilante, com aqueles que têm uma visão utilitarista, calculista, egoísta das relações e não prezam pela ética. Frei Betto alerta: “Há pelegos disfarçados de militantes de esquerda. É o sujeito que se engaja visando, em primeiro lugar, sua ascensão ao poder. Em nome de uma causa coletiva, busca primeiro seu interesse pessoal. O verdadeiro militante, como Jesus, Gandhi, Che Guevara, é um servidor, disposto a dar a própria vida para que outros tenham vida. Não se sente humilhado por não estar no poder, ou orgulhoso ao estar. Ele não se confunde com a função que ocupa”. 

O movimento de EcoSol se organiza em três segmentos, desde a criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária em 2003. Há os representantes dos empreendimentos econômico solidários, os gestores de políticas públicas e aqueles de apoio, que comumente integram as universidades, ONGs ou são voluntários.

Além disso, há os simpatizantes que integram redes de comunicação que difundem os princípios e valores da EcoSol. Os fóruns de economia solidária municipais, regionais e nacional são espaços públicos que agregam esses segmentos sendo recomendados para o exercício da militância.

Há contradições nos fóruns de EcoSol, representadas por aqueles que as integram somente para a realização de trocas econômicas e não objetivam mudanças na sociedade. Há, ainda, a crítica dos integrantes dos empreendimentos econômico solidários a gestores de políticas públicas, principalmente das prefeituras, que ocupam cargos sem terem o perfil que alie boa formação técnica e comprometimento com a construção de uma sociedade para além do capital, representando lógicas políticas do governo ou, pior, de mandatos parlamentares de apoio aos governos.

Essas controvérsias ocorrem no seio do movimento de EcoSol, e necessitam ser enfrentadas e superadas, para que haja alinhamento e coordenação entre os seus integrantes e os fóruns sejam assimilados como redes sociotécnicas para terem atuação determinante na transformação da governança dos territórios, mudando de uma lógica puramente mercantil para outra, com fundamentação na solidariedade em forma de reciprocidade e na democracia econômica.

Os fóruns, tal como o Fórum de Economia Solidária na Baixada Santista, funcionam com a realização de articulação política do movimento e, principalmente, formação para o entendimento e prática da EcoSol, ou seja, formar para transformar.

Necessita-se, entretanto, que os fóruns, que são núcleos de construção de uma outra economia e sociedade, se expandam e se tornem uma grande rede com outras redes em seu interior, dependendo das causas e ações.

Assim, como afirmou Che Guevara, atende-se à necessidade de a sociedade se converter em uma grande escola e todos sermos militantes no processo de, no mínimo, construirmos a democracia econômica, salvarmos o planeta e, consequentemente, a nossa existência.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista