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A palavra rede é utilizada amplamente sem que seja devidamente conceituada. É comum ouvirmos frases como “temos que trabalhar em rede”, “eu integro uma rede”. As pessoas podem estar se referindo a termos com o mesmo sentido ou não.

Rede, de forma geral, passou a ser sinônimo de pessoas em relação, o que não explica adequadamente como agem e por que estão em relação. Esse termo, rede, é utilizado para se referir a diferentes situações: rede elétrica, rede web – internet, rede social, rede de transporte coletivo, rede solidária e até rede como nome de partido político.

O presente texto apresenta um tipo de rede que nos possibilita viabilizar projetos ou analisar casos de sucesso ou insucesso.

Rede sociotécnica é um conceito da sociologia da inovação elaborada na década de 80 por Michel Callon e Bruno Latour, autores franceses.

Representa um conjunto heterogêneo de atores sociais e elementos não humanos em relação, alinhados em torno de um quadro de interesse comum. Atuar de forma alinhada representa cada integrante exercendo um papel definido e em colaboração.

Atentem para o fato de que nenhum projeto se viabiliza somente por seu autor considerá-lo bom. É a rede sociotécnica que vai viabilizá-lo. O fator determinante para a construção da rede é a capacidade de o projeto estabelecer alianças entre diferentes atores sociais para a sua viabilização.

Esse movimento não significa jamais convencer pessoas, mas mostrá-las que ao se aliarem, estando em colaboração com outros atores, os seus objetivos serão alcançados e permitirão que os outros atores alcancem também seus objetivos.

É de fundamental importância o papel dos atores que animarão o processo e esclarecerão a sua importância para que outros se aliem e colaborem com a sua execução. Como já afirmado, não se trata de convencimento. A adesão é feita pelo fato de as relações e benefícios decorrentes serem também do interesse daquele que adere.

Este papel, o de construtor das alianças, tem que ser exercido por alguém que tenha credibilidade técnica e pessoal. Sugiro aos leitores que escolham um projeto qualquer de geração de trabalho e renda que tenha alcançado sucesso. Façam uma busca e encontrarão no processo de estabelecimento de alianças aquele que as promoveu. Pode ser um ator ou mais em determinada etapa do projeto e, em outra, podem ser outros atores, dependendo das necessidades que emergem.

Há projetos que partem dos governos ou ONGs, que objetivam a geração de trabalho e renda para grupos comunitários e não apresentam bons resultados. Comumente não são pertinentes por não estarem fundamentados em estudos socioeconômicos bem realizados e porque não construíram as alianças necessárias para a sua viabilização, ou seja, a rede sociotécnica não se forma.

Enfim, nenhum projeto se impõe pelas suas características próprias, suas virtudes. É a rede que o viabiliza. Há pessoas que acreditam que para haver autogestão de empreendimentos econômicos solidários é dispensável que haja diversos atores no apoio ao projeto, seja do poder público, voluntariado, clientes de serviços e produtos; o que se trata de um equívoco, obviamente.

Afinal, a autogestão está relacionada com as decisões dos integrantes do empreendimento de como administrá-lo e não se tem ou não aliados que o apoiam. O empreendimento será tão forte quanto o elo mais fraco da rede sociotécnica que o porta, que lhe dá vida. Portanto, deve-se ter uma vigilância contínua para avaliação e correção de rumos.

A sociologia da inovação, que nos traz o conceito de rede sociotécnica, pode ser aplicada a qualquer projeto, mas aqui tratarei de um exemplo simples em economia solidária para melhor entendimento.

Drive Thru dos agricultores familiares de Itanhaém

Durante o afastamento social houve queda na comercialização dos produtos da agricultura familiar de Itanhaém. A engenheira agrônoma, que atua como gestora de economia solidária da prefeitura, propôs criar uma barraca coletiva onde os agricultores familiares pudessem comercializar seus produtos e os consumidores adquirir orgânicos com a maior segurança possível.

Esta ideia aparentemente era boa, mas para os sociólogos da inovação nenhuma ideia nasce boa, é a rede que a torna boa. Assim, iniciou-se a formação da rede sociotécnica para viabilizar a ideia com a adesão de oito agricultores.

Reuniram-se e estabeleceram um acordo: eles escolheriam onde montar a barraca de comercialização, se revezariam no dia das vendas, que seria uma vez por semana, às quartas-feiras, cada um levaria os seus produtos e disponibilizaria a sua barraca em rodízio que serviria a todos.

O dinheiro arrecadado seria rateado de acordo com a comercialização de cada um. A prefeitura faria a sinalização da rua, marcaria os locais onde os veículos dos consumidores parariam e a guarda municipal presente daria maior segurança.

Além disso, todos estariam comprometidos com o protocolo de saúde em relação à Covid-19 e a fazerem divulgação nas redes sociais e diretamente aos consumidores, que continuavam a frequentar a feira do produtor que é organizada aos sábados.

Este exemplo mostra que o projeto somente se viabilizaria se fosse criado um quadro de interesse comum para prefeitura, agricultores e consumidores.

A rede sociotécnica existe pelo fato de o projeto existir e o projeto somente existe porque há a rede que o porta. A gestora de economia solidária da prefeitura não teve somente a ideia, mas também iniciou os contatos com os integrantes de outros setores da prefeitura mencionados, como guarda municipal e comunicação, com os agricultores familiares mostrando a possibilidade de organização para uma outra forma de comercialização, mas sem postura de convencimento.

Outros agricultores fizeram o mesmo com seus colegas. Assim, emergiu uma inovação organizacional vinculada à comercialização que serviu de referência para outros locais. Os agricultores alcançaram o seu objetivo que era comercializar os seus produtos, os consumidores puderam comprar orgânicos em segurança tendo um dia a mais em relação aos sábados, quando se realiza a feira do produtor, e a prefeitura dinamizou a economia de um segmento.

As redes sociotécnicas não são todas iguais, há diferenciação por tipos. Há aquelas que se caracterizam somente pelo aspecto mercantil, ou seja, não há cooperação entre os atores envolvidos e prevalece o toma lá dá cá, dinheiro por produtos ou serviços.

No entanto, esta rede sociotécnica que se formou com a barraca coletiva de comercialização em Itanhaém tem o aspecto mercantil nas relações, obviamente, mas há também solidariedade em forma de reciprocidade entre os atores, o que a caracteriza como uma iniciativa econômica solidária. A confiança e o engajamento de cada um, em uma rede sociotécnica integrada também pela prefeitura, expõem a existência de capital social.

Outro fator determinante para a construção da rede é a ativação das proximidades geográfica e organizacional entre os seus integrantes.

Pode-se tirar deste caso o ensinamento de que a economia solidária não se organiza somente por meio de empreendimentos em que os meios de produção são coletivos, como uma fábrica recuperada, ou por meio de uma cooperativa de comercialização, por exemplo. A sua organização também se dá por meio de iniciativas informais regidas por um regimento definido coletivamente, que são viabilizadas por pequenas redes sociotécnicas, que exigem coordenação e alinhamento entre os seus integrantes.

Este mesmo referencial teórico, conhecido como sociologia da inovação ou sociologia das redes sociotécnicas, pode ser usado também para analisar os projetos que fracassaram. Muitas vezes, nesses casos, as ideias partem prontas de um expert, como um pacote tecnológico ou organizacional, e não têm capacidade de provocar interesse nos atores sociais que o viabilizariam por meio de uma rede sociotécnica. Dessa forma, recomendo que os projetos sejam participativos desde a sua gênese.

Para aqueles que quiserem conhecer melhor o tema e viabilizar os projetos que participam ou pretendem participar, assim como entender por que um projeto teve sucesso ou fracasso, sugiro os livros “Ciência em Ação” e “Reagregando o Social: uma introdução à teoria do ator-rede”, ambos do antropólogo e sociólogo Bruno Latour.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista