O interior da caverna do Abismo Anhumas - Foto: Kamila Drieli

Certa vez li um texto que falava sobre a importância de partir. Aquilo me pegou de jeito. Eu, que estava prestes a concluir a faculdade e acabara de assumir um cargo público na prefeitura de Cubatão, já estava insatisfeita com as possibilidades que pareciam disponíveis, ao mesmo passo em que sentia um medo paralisante de acabar me acostumando com a vida que levava naquele período.

O tal texto acabou sendo potencializado com a leitura da biografia da Cheryl Strayed. Livre é uma obra incrível, intensa, honesta e tocante, e me colocou em confronto direto comigo. As experiências e emoções narradas, e a identificação com a minha própria vida que aumentava a cada página. Após a leitura, relembrei o texto lido meses antes. E, como se o livro validasse tudo que eu estava pensando, decidi partir.

Em maio de 2015, após surpresas de despedida e uma mistura de incredulidade e desejos de boa sorte dos familiares e amigos, eu peguei um voo que me deixou em Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, e de lá uma van com destino a Bonito, lugar bem conhecido pela galera que procura natureza e aventura, além de nacional e internacionalmente reconhecido como um destino exemplo de organização e atendimento.

Por que Bonito? Não sabia exatamente. Um ano antes conheci a cidade numa viagem com duas amigas. Nós três decidimos ir por causa do valor absurdamente barato na época. Pagamos menos de trezentos reais nas passagens de ida e volta de avião, e enquanto arrumávamos as malas, líamos e trocávamos informações sobre as atrações que nos aguardavam.

Três meninas sonhadoras de vinte e poucos anos, três estudantes de biologia ávidas por uma conexão mais real com o “objeto” máximo de nosso estudo: a vida.

Foi a primeira vez que pisei numa aeronave, mas não antes de perder o voo, discutir com uma atendente da companhia aérea que não fez o menor esforço para nos instruir, ficar horas esperando o próximo voo e pensar em como poderia sobreviver, caso o avião caísse.

Não sei se foi uma experiência exatamente boa essa primeira, mas foi uma experiência necessária. Hoje, após muitos voos, ainda penso em como sobreviver, caso ocorra um imprevisto no ar.

Então, seguimos. Ficamos seis dias, e voltamos.

O problema é que a inquietação que eu já começara a sentir, uma sensação de não pertencimento ao lugar onde estava, se potencializou na viagem. Após conhecer aqueles lugares incríveis, entrar naquelas águas de tons verde esmeralda e azuis inimagináveis, aquele céu absurdamente estrelado.

Lembro-me especialmente de um, Abismo Anhumas, uma caverna que possuí uma única entrada, pelo teto. Para descer é necessário fazer um rapel de 72 metros de altura. Lá fomos nós, tão destemidas, descendo e rezando. E depois de conhecer aquele acontecimento geológico inexplicável, observar aquelas águas e sentir a temperatura pura e a liquidez daquela transparência, subir os 72 metros até a superfície. Pendurada numa corda de um centímetro de espessura. Movimento após movimento, tremendo de medo, observando as criaturas diversas esculpidas pela água que corrói a rocha, por milhões de anos. Aquilo mudou a minha vida para sempre. Pode parecer exagero, mas não é.

De repente a vida que eu conhecia me pareceu monótona e genérica. Não acreditava mais que viver na cidade fosse a minha única possibilidade, enfrentar trânsito diariamente, temer com a precariedade das políticas públicas, sentir-me cada vez mais indignada com o crescente descaso do governo. Minha visão tinha se expandido, eu tinha percebido um modo de viver mais compatível com as demandas do meu espírito.

Onze meses depois da viagem eu peguei outro avião para Campo Grande e outra van para Bonito.

Só de ida.

Que experiência chegar numa cidade desconhecida. Sem amigos, sem familiares, sem uma pessoa sequer que me conhecesse. Talvez um guia que achasse meu rosto familiar, porque me conduziu num passeio no ano anterior, talvez o monitor que segurou minha mão durante a flutuação no lago surreal dentro do Abismo Anhumas. Mas, ninguém que soubesse quem eu era.

Uma sensação de que tudo seria possível a partir dali brotou dentro de mim e minha vida desacelerou. Pude respirar, olhar o céu, experimentar uma liberdade mais inteira, não me preocupar com o que podiam achar sobre o que eu fazia, ou sobre como escolhi existir. Foi uma grande mudança. Tão drástica que além de expandir toda a minha consciência como mulher, como Homo sapiens, me deu um filho, me deu o Bento. Nascido em Bonito, fruto do carste (tipo de relevo geológico caracterizado pela dissolução química das rochas, que leva ao aparecimento de uma série de características físicas, tais como cavernas e dolinas, comuns em Bonito).

Agora, quase cinco anos depois, voltei pra Baixada Santista. Passei os primeiros quatro meses na casa dos meus irmãos, mas depois de morar sozinha tanto tempo é muito difícil voltar a morar na casa de alguém, mesmo que esse alguém seja um irmão. Ainda mais com um filho pequeno, sempre paira no ar uma sensação de que estamos incomodando de alguma forma.

E a casa onde eu cresci e morei a maior parte da minha vida que estava desabitada, fechada e vazia, começou a tornar-se uma opção cada vez mais atraente. Afinal, desejar privacidade e espaço sem incomodar ninguém e ter uma casa da família vazia e disponível pareciam questões complementares. A mesma casa onde cresci, a mesma casa por onde brinquei, andei e aprendi. Vazia. Sem os móveis antigos, sem as plantas da minha mãe, sem o carro do meu pai na garagem.

O problema era estar novamente no lugar que foi cenário de tantas alegrias, momentos inestimáveis, memórias eternas, mas também muita dor, lágrimas e perdas irreparáveis. As mesmas paredes que me viram como filha, me receberem como mãe.

Agora eu estou aqui e ao olhar pela mesma janela, do quarto que volta a ser meu, vejo meu filho brincando no quintal. Quintal que meu pai azulejou, quintal que minha mãe lavava de mangueira.

E, ao olhar para a casa, para suas formas e detalhes, seu teto irregular e o móvel do banheiro que permanece o mesmo, enxergo o motivo de estar, faz sentido pra mim, e toda aquela sensação de fracasso que acompanha inconscientemente o ato de voltar, seja por necessidade ou por desejo, se desfaz numa nuvem etérea de compreensão.

E vejo que em nada se relaciona com fracasso de qualquer tipo. Só percebi que quando vamos, não desejamos o regresso. A vida nos parece linear, sempre em frente, às vezes um leve desvio, uma curva, mas nunca um retorno. Mas as coisas não são assim, na verdade as coisas não são de jeito nenhum. As coisas estão, num dado instante, e em seguida mudam, para provar que o controle é uma ilusão.

Por fim, a mesma casa que me fez entender que era preciso partir, que era preciso ir em busca de mim, correr para ver outros pedaços de mundo, assimilar outros lugares como lar, me ensina sem dizer palavra que às vezes é preciso voltar e olhar o passado com mais empatia, com mais carinho, e agradecer por poder observar os detalhes que ficaram pelo caminho.