Imagem: Noelle Mirabella

Tempos modernos e eu, como provavelmente você, estou sempre com o smartphone na mão. Lendo, interagindo com os amigos, vendo fotos, assistindo vídeos, acompanhando os desdobramentos da pandemia, do nosso governo, e do mundo. Não tenho televisão em casa há algum tempo, e a internet nos possibilita saber sobre coisas menos midiáticas, menos eurocêntricas. Além de podermos buscar as notícias e fontes que desejamos. Aliás, saber a fonte da notícia é primordial nos dias atuais, na era em que fake news definem eleições presidenciais e ler se tornou algo trabalhoso e facilmente descartável.

Dias atrás compartilhei uma frase no meu Instagram pessoal que dizia “Quantas são as mulheres que não se tornaram artistas/poetas/cientistas por terem que cuidar dos afazeres domésticos?” e isso mexeu comigo. Na verdade, ultimamente, muitas coisas mexem comigo. Acredito que estamos todos à flor da pele com o espectro da morte invadindo nossas terras, e com a permissão dos poderosos para fazê-lo sem encontrar resistência. Nem sei mais se é apenas abstrato ou se de fato a morte tem exatamente o mesmo semblante dos primitivos seres que nos governam.

Mas, para além de me tocar de forma emocional, a frase publicada originalmente no Instagram do Quebrando o Tabu me lembrou de uma matéria que li em meados de maio, no meio de todo o caótico isolamento social. A matéria em questão dizia – em seu título – que a produção científica de mulheres despencou durante a pandemia. Ora, veja bem, então não é bem quantas mulheres DEIXARAM de ser isso ou aquilo e sim quantas mulheres DEIXAM, dia após dia, de serem e fazerem o que desejam e precisam para realizar um trabalho reprodutivo e sem perspectiva de futuro ou remuneração. Pode parecer drástico assim, numa primeira lida, mas usando toda a empatia disponível, vemos claramente o quanto ficar em casa pode ser uma prisão dolorosa para muitas mulheres. Eu, como mãe solo, vivencio essa realidade no meu dia a dia. Entre trocas de fralda, café da manhã, banho, brincadeiras, almoço, desenho animado e jantar, pouco tempo sobra para ler e escrever.

Naomi Wolf, em sua obra O Mito da Beleza nos conta de forma profunda como as prisões das mulheres mudam conforme suas conquistas. Como seria isso? Antes, nós tínhamos papéis bem estabelecidos dentro da sociedade: os cuidados domésticos, dos filhos, do marido, ou até dos irmãos. Nunca em espaços públicos, de visibilidade, de intelecto. Hoje vivemos uma expansão dos movimentos feministas e a cada dia mais mulheres se dão conta das desigualdades que vivem. Sabemos, por exemplo, o quanto é injusto recebermos menos por desempenharmos o mesmo trabalho que um homem, ou por precisarmos escolher entre nossas carreiras e a maternidade. Mas a estrutura patriarcal, embora falha e injusta, e de não possuir fundamentos que a sustentem nos dias atuais, está em vigor há muito tempo, desde a Grécia antiga encontramos relatos sobre o começo da subjugação da mulher como ser incapaz de liderar, ou ocupar posição de destaque.

O que observo hoje é que as mulheres mais livres, que se dedicam em seus trabalhos, que se posicionam aberta e livremente, em sua esmagadora maioria, tendem a precisar de uma outra mulher para isso. E essa outra mulher é quase sempre negra, indiscutivelmente pobre. Para sair do ambiente doméstico de cuidados gerais e para ocupar um espaço no trabalho produtivo que proporciona remuneração (nem sempre justa), prestígio social e, às vezes, perspectiva de crescimento profissional, essa mulher livre precisa colocar outra mulher no mesmo trabalho do qual se libertou. Ou seja, a perspicácia da estrutura resiste.

Hoje, diante de tantas mudanças progressistas para nós, mulheres, fica claro que passamos a associar liberdade com dinheiro. Quanto mais dinheiro se ganha, menos dependente de alguém nos tornamos. E então podemos consumir os melhores produtos, o liquidificador de última geração, a geladeira de portas duplas mais atual, o aspirador de pó mais funcional que já se viu. Mas, de que adianta tudo isso, se o manuseio de tais objetos ainda é quase exclusivamente nosso? Não podemos associar nossa cozinha planejada cheia de eletrodomésticos futuristas à liberdade se esse mesmo espaço ainda é visto como o nosso lugar. A grande pergunta é “Eles modernizam os nossos lares para otimizarem nossas vidas e nos permitirem mais tempo livre ou o fazem para que nos sintamos confortáveis em nossas jaulas inovadoras e paremos de lutar?”

O trabalho doméstico realizado por mulheres representa aproximadamente de 10% a 40% do PIB de um país. Com este trabalho as mulheres contribuem para a economia suprindo necessidades em matéria de serviços. Os homens podem sair de suas casas e passar o dia em seus trabalhos, dedicando-se com afinco, por quase sempre existir uma mulher que cuida de suas casas, roupas, comida, filhos. Sem contar a célebre frase que mulheres que trabalham em casa escutam com frequência: “Mas você não trabalha?”.

Por que esse trabalho não é dividido, remunerado, e nem contabilizado?

Acho engraçado quando dizem por ai que meninos não podem brincar de boneca, de casinha, ou gostar de rosa. Tentam a todo custo incutir em nós – ou manter a ideia incutida – de que existem lugares determinados de acordo com nosso gênero. Já as meninas nascem e já ganham bebês para cuidar, fogões e panelinhas para cozinhar, vassourinhas e rodinhos para limpar o chão. Não que exista um problema neste tipo de brincadeira, pelo contrário, o perigo reside em acharmos um absurdo que os meninos também aprendam a cuidar de crianças, limpar a casa e fazer sua comida, e que as meninas não sejam incentivadas a subir em árvores, jogar bola, e ler livros.

Imaginem só um mundo onde, desde cedo, incentivamos o laço paterno, a igualdade de responsabilidade sobre as tarefas domésticas, a criatividade e a inteligência sem distinção, sem limitarmos as capacidades individuais por conta do que determinaram como certo ou errado para cada sexo. Imaginem um mundo onde percebemos que a saída mais palpável para uma sociedade justa é percebermos nossas algemas, acharmos as chaves, e libertar nossas mãos. Sem deixar de enxergar se essa liberdade é real ou custa a liberdade de uma outra mulher, sem esquecermos que enquanto uma de nós estiver presa, ainda que as grades sejam diferentes, continuamos todas encarceradas.

Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.