Foto: Reprodução/YouTube

“Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença.

E fui aparelhado

para gostar de passarinhos”

(Manoel de Barros)

Pelas manhãs eu aprecio o céu. Mesmo quando o meu despertar é antes do amanhecer eu gosto de olhar para as estrelas e fico em estado de graça. Um estado em que a felicidade floresce do cotidiano. Tem dias em que a alegria, por exemplo, é prestigiar a lua cheia no alvorecer. Noutros dias, a felicidade é ver o céu ganhando os tons rosados prenunciando a chegada do sol.

Há cerca de dois meses eu notei que na minha janela tinham pequenas ramas de vegetais que pareciam cuidadosamente agrupadas. Comecei a desconfiar que um passarinho tinha pedido para minha janela ser um ninho, mas ainda era muito insipiente. Mirando ao redor comecei a procurar os pássaros. Se a minha morada fosse ser um abrigo para novos passarinhos eu precisava me preparar. Agucei minha percepção visual e auditiva.

Nessa experiência única de ser uma escolhida como cuidadora da natureza aprendi sobre cantos mais do que experientes músicos. Aprendi a identificar novos galhinhos depositados a cada dia. Aprendi que mesmo em dias de chuva o céu segue azul para as aves e que qualquer fio sintético colorido serve para aumentar a poesia do abrigo. Um cântico se destacava por ser mais frequente, de maior volume e por ser em dueto. Achei, então, um casal de bem-te-vis, com seu peitoral amarelo vivo como um raio de sol que ofusca os olhos.

Passo o dia procurando por eles. Já sei os lugares prediletos que eles gostam de estar. Entendi os seus principais movimentos e seu rítmico bater de asas. Faz uma semana que a passarinha entrou no ninho. E faz uma semana que entro no meu quarto com cautela, sem espetar meus pés descalços no chão. Não mexo na janela. Ouço música em um volume baixo e prezo pelo silêncio. Quem sabe dar ouvido ao barulho das asas ou aos piados dos novos filhotes.

Conheci Orlando e seus olhos doces amarelados durante sua internação. No nosso primeiro contato já ficamos dados a intimidades. Não é para todos que sorrimos e choramos. Mas com ele foi assim. Quando entrei no quarto presenciei um beijo dele e de sua companheira, a Antônia. Inicialmente se desculparam, dizendo que sabiam que lá não era lugar de “assanhamentos”, parafraseando seus pais. Sorrimos. Eu lhes disse que o amor não era pra ser escondido, que deveria ser ostentado como uma bandeira de cor bem vívida. Nos olhamos e em segundos nossos olhos vertiam águas com correntezas amargas. O corpo de Orlando, miúdo e devastado pelo câncer, se sacudia no leito. Ele me disse:

-Tive uma vida de poucos afetos. Nunca fui muito aberto aos beijos e aos abraços. Eu era trancado pro lado de dentro com uma chave danificada e com uma fechadura emperrada. Mas essa doença destrancou o meu riso e o meu gosto por beijos. Meu neto me beija! Minha filha me beija! Até minha cachorrinha anda me lambendo por demais!!

Falava pausadamente pelo cansaço. Eu ouvia atentamente. Antônia puxava o lençol para enxugar as lágrimas. Recuperamos o fôlego… E ele seguiu mais um pouco:

– Sei que vou morrer, mas entendi também o que me faz viver. Antônia faz com que eu me sinta vivo. Faz minha alma sentir que tem uma casa. Ela é o meu ninho.

Orlando começou tratamento e melhorou. Não porque a quimioterapia o curou, porque sua doença não dava essa chance. Diante da impossibilidade de curar, tudo que se oferece é cuidar e isso não é pouco e nem é fácil. Traçado o plano de cuidados, ajustadas as expectativas e os valores, ele foi cuidado pela família e pelos profissionais de saúde.

Começou a tomar analgésicos potentes para controle de dor entre outras medidas de conforto. Foi para casa ficar perto de sua cachorrinha e de sua já crescida árvore-da-felicidade, com seus galhos finos e numerosas folhinhas. Ele ganhou a muda dessa árvore após a superação de um período de desequilíbrio de seu casamento, na comemoração das bodas de vinte anos de união. Não que a crise tenha sumido. Mas a dor se transformou. A ferida abriu, sangrou e limpou. Seguiram juntos numa união que já tinha pouco mais de quarenta anos.

No nosso último encontro Orlando tinha um tom de pele de uma cor solar. O câncer interrompia o escoamento da bile, por isso tinha tubos em seu abdome para auxiliar artificialmente a drenagem. Mas a doença progrediu e isso não era suficiente para sua melhora. Estava totalmente amarelo. Já não caminhava mais. Comia pouco. E se sentia preso pelas mangueiras fincadas em seu corpo e também por seu espaço e território estar circunscrito ao seu quarto. Não se sentia mais vivo. Foi perdendo a coragem de ter esperança. Pedia para morrer, mas não queria que Antônia percebesse. Então, fazia isso enquanto ela dormia, mas ela ouvia mesmo assim. Toda a violenta esperança de um milagre foi se transformando em aceitação, numa reconciliação com a ideia do morrer. Ele faleceu livre porque retiramos os tubos que ele tinha no corpo e não introduzimos mais nenhum. Sua família ao seu lado, todos gratos pelos dias que puderam viver.

Volto para casa pensando no casal de bem-te-vis que escolheu minha janela como ninho e os procuro. A passarinha já está abrigada e seu canto mudou. Cada fase da vida tem uma melodia. O macho permanece à espreita, fica por perto para alimentar e cuidar de sua ninhada. Sento para escrever com as minhas asas abertas. Tento me inspirar. Lembro mais uma vez de Manoel de Barros dizendo que “fazer poesia é errar bonito”. Sem erro não há vida, não devemos ter medo de errar e nem de amar. Os bem-te-vis me ensinam a “cantariar” a saudade e trazem leveza. Voe livre, Orlando, obrigada pela partilha.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.