Foto: Divulgação/Fiocruz

“Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo”.

(Ariano Suassuna).

Maria Caetana Bode nasceu em Taperoá na Paraíba, debaixo de uma figueira numa escura noite de lua nova em que os vaga-lumes brilhavam tanto quanto as estrelas. Aos pés da árvore uma imagem pintada à mão da santa protetora do bom parto. Veio ao mundo pelas mãos de sua avó, Joselina Bode, uma conhecida parteira, benzedeira e raizeira da região do semiárido. Mas as mesmas lágrimas que vertiam dos olhos da velha senhora pelo nascimento de sua neta lavavam a alma pela perda da sua filha. Das centenas de partos que a experiente Dona Jose já tinha realizado, este seria o terceiro com uma morte. E a morte de ninguém menos do que sua primogênita.

No começo desta tarde, enquanto as mulheres da família preparavam bolos para a celebração do novo ciclo lunar, Diana, grávida de oito meses, teve um mal-estar e a bolsa rompeu. E a noite em que se programava um festejo à lua com canções e histórias ficou sombria depois das expulsões da bebê do útero e do espírito do corpo da mãe.

O ar em volta parecia ter ficado pastoso e os movimentos de toda a comunidade ficaram lentos. Do céu, uma fina chuva repentina veio como um choro do universo. Não há meios de prevenir ninguém sobre um parto se a morte está à espreita, pronta para agir. A menininha nasceu calada. O primeiro choro demorou a vir. Parece que ela respeitou em silêncio a dor. Dona Jose olhou para a imagem da padroeira no pé da árvore, pediu força divina, invocou suas rezas e sua odara. Sendo assim, nasce Maria Caetana, a menina que viu a morte ao nascer.

A menina que não chorou ao nascer parece entender que a vida estava pesada. O berço construído para ela nunca foi usado. Ficou num canto, embaixo de uma colcha empoeirada, em um canto onde tinha uma avenca esquecida que nunca mais foi regada. O móvel tinha sido construído pela sua mãe e parecia que ele sentia a ausência dela. Tinha um estranhamento as nuances feitas cuidadosamente em marchetaria. Diana pensou em cada detalhe. Mas o berço não tinha o direito de existir sem a família estar completa. Uma pessoa que existira no mundo não podia deixá-lo assim tão de repente. Tinha um espaço vazio. Um espaço vazio inacreditável, insuportável, interminável. Por isso, desde pequenininha, a Caetana dormia agarrada na avó. E esta, sim, chorava nas madrugadas.

Quando a menina fez dois anos parece que ela destravou. Começou a chorar muito. Desaguava tudo que não tinha conseguido desde a noite em que nasceu. Seguia aos prantos mesmo no colo quentinho. Mesmo no balanço do ninar. Um dia a avó, já cansada, se perguntou se em algum momento a bebê se acostumaria com as dores da vida e pararia de chorar. Dona Jose já sabia que seu choro não era de fome. Nestes momentos a abraçava forte e dizia:

– Chore, minha menina! Chore até gastar essa tristeza! Chore…

E, para acalmar a menina, usava seus conhecimentos sobre ervas e suas rezas. Dava erva cidreira antes da menina dormir. Dava chá de melissa ao menos duas vezes ao dia. Encomendava com a vizinha que passava as férias na Bahia folhas secas de mulungu que a Caetana tomava com uma cara amarrada por ser amargo. Nas noites em claro, olhava para o seu jardim e imaginava a copa vermelha do pé de mulungu tingindo e acalmando suas mágoas. E aos fins de tarde no seu quintal, com o sol já poente, e as plantas ainda quentes no seu jardim, colocava a neta no colo e a benzia. Dona Jose sempre acreditou que quando tudo está pesaroso e é a bondade e a fé que nos resta.

E assim como o solo semiárido da Paraíba que floresce o verde após dias do solo encharcado pela chuva, parece que a menina floriu. E não é que parou de chorar? Ela aprendeu a se acalmar nas tardes com plantas e rezas. E, com o tempo, conhecia cada vez mais o seu jardim curandeiro. Foi se tornando uma conhecedora dos bens da floresta. Usava a casca do angico para cuidar da sua pele. A umburana de cheiro para gripe e febre. E nunca parou de tomar o chá de mulungu que apreciava cada vez mais.

Maria cresceu acompanhando a avó e seus “filhos e filhas de pegação”. A cada parto elas ficavam mais de vinte dias com a mulher que dava à luz para zelar, proteger e acolher o amor materno. Parir é um ato de vida, mas também é a morte da vida que se tinha previamente. Ainda criança, Caetana lavava, passava e cozinhava para as mães recém-nascidas. Na adolescência, depois de sua primeira menstruação, foi ganhando responsabilidades como o parto da placenta, os cuidados com o útero nos dias seguintes ao nascimento e os preparativos nas mamas das puérperas para que rachassem o menos possível. Aos vinte anos fez seus primeiros partos sozinha e benzia as crianças logo que chegavam ao mundo, espantando os maus espíritos.

Quando avó e neta não estavam trabalhando, dona Jose contava as histórias de Diana para que ela não fosse esquecida. A mãe que Maria Caetana não conheceu se impunha nas sobrancelhas sisudas, nas covinhas nas bochechas, no dente canino encavalado… Tudo naquela filha reafirmava a semelhança. Era a ausência presente e absoluta! Mas também contribuía para que, diariamente, ela fosse lembrada sobre a própria tragédia que, de alguma forma, foi responsável. Não é fácil carregar nos ombros a morte da própria mãe. A ferida lhe era profunda. Ninguém ensina como lidar com o drama já instaurado do corte rápido do cordão umbilical para que o sangue da morte não contamine o da vida. Por isso, ela resolveu não ter filhos. Mas se dedicaria, como a avó, ao nascimento de seus filhos de pegação. Foi parteira. For parteira por opção da vida. Para sobreviver às dores que a vida lhe trouxe.

E parteira não tem hora. Nem curandeira. Muito menos benzedeira. A sabedoria da vida foi florescendo naquela menina enlutada. Ela cresceu. Era um titã de sensibilidade. Como diria o escritor João Guimarães Rosa: “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”. Maria Caetana, de conselheira, passou à grande curandeira da sua região conhecida como “Zinha Caê”. Sabia como ninguém como cuidar do corpo e da alma. Protegia com um manto de cuidados as intempéries da vida. Paliava.

E quando exatamente morreu a jovem Caetana e nasceu a Zinha?

Quando a balzaquiana percebeu que a sua avó estava morrendo. Primeiro a achou estranha, com a barriga crescendo. Parecia que a maçãs do seu rosto estavam tão murchas como as avencas nunca regadas no canto do quarto. Depois veio uma fraqueza nas pernas. Até que um dia, aos 88 anos, vó Jose, acometida por um câncer, é cuidada pela neta para que ela não sinta dor. Ela se importava pela avó, se importaria até o final da vida daquela. Fez tudo que estava ao alcance para que a vó vivesse plenamente até o dia de sua morte, e ajudou a avó a morrer em paz*. No momento da partida, acendeu uma vela de alecrim para purificar o revés do parto mais importante que ela faria. E a partida foi tranquila.

Toda essa vivência desembocou no renascimento de Zinha. Foi no cuidar do outro que ela encontrou a sua paz. E aos pés da mesma figueira onde aconteceu a morte de sua mãe Diana, trinta anos antes, ela despeja as cinzas da vó Joselina para que o ciclo da vida se complete.

*Referência à famosa frase de Dame Cicely Sauder, a matriarca do Cuidado Paliativo: “No cuidado no momento final da vida, quero que você sinta que me importo pelo fato de você ser você, que me importo até o último momento de sua vida e faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para que você viva até o dia da morte”.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.