Foto: Divulgação/PMS

Comecei a ir às vezes para o trabalho de bicicleta em 2018, inicialmente como uma forma divertida de me deslocar. Percebi uma mudança no meu olhar sobre as ruas e lugares rotineiros, e uma amplitude de perspectiva se abriu.

No final deste ano, meu carro estava bastante ultrapassado e optei por vendê-lo. Na ocasião, estava com minha carteira de motorista vencida e decidi não comprar outro automóvel. Durante o processo de renovação da habilitação, meus deslocamentos foram todos de bicicleta, exceto em dias de chuva, quando eu pegava Uber. Fiz isso por cerca de três meses. Após esse tempo guardei meu documento renovado na carteira e ando por aí em duas rodas.

No meu percurso mais longo, às terças e quartas, chego ao trabalho muitas vezes um pouco suada e cheia de energia. E confesso que reflito bastante ao entrar em um quarto do hospital e me deparar com uma das pessoas internadas que está acamada. Olho para seu corpo no leito e é inevitável a comparação.

Minhas pernas, aquecidas pela pedalada diante de pernas muitas vezes atrofiadas. Minha respiração já ofegante, diante de pulmões com drenos para que se expandam ou com máscaras de oxigênio. Meu coração acelerado diante de pessoas nos últimos minutos de vida, já em falência de seu sistema cardiovascular.

Um mundo totalmente oposto, minha liberdade atual sendo avisada de que tudo isso pode ser efêmero. Que uma vida cheia de energia vital pode se transformar em um corpo totalmente parado, em desarmonia, necessitando de terceiros que o ajudem a se manter. Refeições assistidas, banhos na cama, uso de fraldas, alguém tocando seu corpo na sua intimidade oferendo dignidade. Não consigo deixar de associar essa condição a uma prisão, e estar presa me horroriza!

Enquanto eu me desloco para o trabalho, exerço minha atividade profissional, volto para casa para prazeres da minha vida pessoal, bebo uma cerveja, assisto filmes, leio livros, alguém está numa cama e, mesmo estando acompanhada, está numa solidão pela perda da independência. Enquanto eu vivo, alguém morre.

E todo esse sentimento em mim se potencializa quando passo um final de semana bastante prazeroso, ou quando volto de férias após uma viagem de semanas. Houve momentos em que, após quinze ou vinte dias distante, volto ao hospital e as mesmas pessoas estão nos mesmos quartos e na mesma posição.

Penso que posso ser uma privilegiada por poder refletir sobre a impermanência da vida, antes que algo assim aconteça comigo. Antes que algum adoecimento atropele minha travessia pela vida, e eu me sinta traída por nunca ter valorizado de fato os pequenos momentos.

Passamos uma vida batendo ponto, cumprindo tarefas, correndo atrás do tempo cronológico, pensando nas férias ou na aposentadoria como os únicos momentos que nos permitimos de descanso. Mas, muitas vezes, no momento em que o relógio de pulso não tem mais serventia, é que vem o adoecimento e prega uma cruel surpresa. Quando achamos que teremos tempo, este pode ser curto demais para que seja aproveitado.

Muitas histórias de vida me marcaram nesses meus oito anos de oncologia, como a de seu Cláudio. Quando eu o conheci ele era um economista aposentado que trabalhava como corretor de imóveis, porque não se via sem uma função laborativa.

Eu o conheci quando um tumor na próstata chegou, traindo muitos de seus planos pessoais, como a felicidade matrimonial de um segundo desejado e feliz casamento. Infelizmente o tratamento do câncer de próstata afeta diretamente a saúde da vida sexual. Como se não bastasse esse susto, em um exame de rotina vimos algumas alterações que descobrimos ser devido a um segundo câncer, desta vez de cólon com metástases hepáticas.
Todo esse contexto, para seu Cláudio, foi motivo de força para enfrentamento. Toda a vida dele tinha sido de uma concretude muitas vezes brutal. Ele foi um militar em sua juventude, e nunca deixou de contar com orgulho de toda sua coragem para lidar com essa fase. Um dia, em um café que tomamos juntos, ele me mostrou com orgulho suas fotos, suas fardas e seu quepe.

Ao todo, foram quatro anos que nos relacionamos, e foram muitos os aprendizados. Quando ele estava com seu câncer de cólon bem avançado, já com grande comprometimento de sua função hepática, visível pelo tom amarelado de sua pele, liderou uma roda de conversas com acadêmicos de medicina para refletirmos sobre como é lidar com uma doença crônica.

Dentre suas falas, as mais marcantes foram: “Quando você está doente começa a ter que cortar as coisas”, “o sentimento de impotência dói mais do que a morte”, “sinto que estou indo embora, mesmo estando aqui”.

O que fazemos com o tempo de nossa existência, você já refletiu sobre isso? Somos mortais e finitos e devemos nos responsabilizar por nossas escolhas. A morte pode mudar nossa relação com a vida e empoderar nossa existência.

Enquanto reflito sobre isso, vou pedalando de volta para casa. Sinto os músculos da minha perna se movimentando, sinto o ar entrando dentre as tramas da máscara, sinto o peso da minha mochila nas costas, sinto o vento no meu rosto. Desfruto da liberdade do meu corpo. Olho para o mar, ele está furioso, com ondas que parecem expressar sentimentos de tormenta, talvez seja um sinal… Amplio minhas sensações ao sentir gotas de chuva cair na minha pele.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista