Foto: Rod Long on Unsplash

Semana que vem vai fazer oito anos que minha mãe morreu.

Oito anos.

São 2.918 dias, desde aquele 27 de outubro em 2012, até hoje.

Daquele dia, o dia em que senti claramente a conexão do meu corpo com os meus sentimentos, o dia em que chorei abraçada aos joelhos enquanto sentia meus pulmões colarem me impossibilitando de respirar e meu coração apertado, como se estivesse sendo comprimido por uma mão grande e invisível, cheia de raiva, sem nenhuma piedade das minhas lágrimas infantis e incontroláveis.

2.918 dias se passaram.

Já não lembro exatamente quantos dias fiquei enterrada na minha cama, absorta num ponto neutro entre a realidade e uma ficção que eu arquitetava, a fim de questionar a veracidade dos fatos que se apresentavam, tentando pateticamente entender os “por quês” de uma atitude tão drástica, de forma tão impiedosa e desesperada.

A mulher que me trouxe à luz, a mulher para quem eu não tive tempo de dizer que aprendi a compreender, que li sobre o passado, vi as correntes e, principalmente, que entendi por que ela acentuava, repetidamente, que eu deveria ser independente e nunca precisar de um homem para viver.

Ela, a minha mãe.

Eu, a caçula de cinco irmãos.

Agora lembro de quando retornei para a faculdade – depois de alguns meses, lidando com a nova realidade – e como a notícia se espalhara por entre colegas e professores.

Entre uma sala de aula e outra, percebia nos corredores nitidamente os olhares em minha direção, num misto de pena e tristeza. Algumas pessoas se arriscavam em me consolar, outras verbalizavam sobre a minha “força” por ter “passado” por tal situação e estar ali, viva, retomando minha vida.

Engraçado como as pessoas são hipócritas, como nós mesmos, incluindo a mim, somos prepotentes e egocêntricos. Como poderia eu, depois de perder a pessoa que me ensinou a viver e amar, me sentir no direito de sofrer a ponto de não conseguir continuar sustentando a vida que ela lutou para me dar?

Não entendia muito bem o que as pessoas queriam dizer com aquelas palavras decoradas para situações como essa, mas agradecia e continuava tentando entender por que eu deveria passar por isso.

– Suicídio. – Ecoava na minha cabeça. – Suicídio. 

Como você explica para alguém que perdeu sua mãe após uma tentativa de suicídio? Como dizer, sem parecer ridícula, que a pessoa que você mais ama na vida, morreu após quatro dias de coma induzido, ocasionado por uma tentativa de suicídio?

Eu não sabia, inventava história:

– Acidente de carro.

– Infarto.

– Parada cardiorrespiratória.

Medo. Lembro de sentir meu corpo gelar quando alguém perguntava sobre ela e eu, sem graça, dizia “Não tenho mais minha mãe”. Após a resposta, que mais parece um soco para quem ouvia, observava claramente os olhos da pessoa se transformarem numa colônia de comiseração.

Ninguém está pronto para perder alguém, acreditem, mesmo que a pessoa em questão esteja com uma doença terminal. Ninguém sabe, ao certo, como seria uma forma ideal de lidar com a morte de alguém que amamos.

Mas, biologicamente falando, 50% do meu DNA veio dela, é dela. Quando me olho no espelho, a reconheço e, consciente disso, de que sou parte dela, me vejo como a cura que ela não teve, como a compreensão que lhe foi negada, como a realização dos sonhos que lhe foram tirados por uma vida submersa numa realidade dolorosa e trágica.

A morte da minha mãe me ensinou também, é isso que as pessoas não veem. Quando a morte se apresenta, a vida se resplandece. Aconteceu isso quando o Bento nasceu, a minha vida se iluminou, meus pensamentos ganharam novas cores. E não exatamente porque ele nasceu, mas porque eu pude ver de forma mais densa e interna como se dá a construção desse nível de amor. E, diante da construção desta percepção, eu prefiro ter sentido tudo que senti quando ela partiu do que submetê-la a perder a mim ou um de meus irmãos.

Eu não imagino perder meu filho, não desejaria para ninguém tamanha dor, e é claro que eu desejaria acompanhar minha mãe numa velhice longa e saudável. Mas não foi assim, foi como foi, e as coisas que foram não podem ser mudadas, quiçá nunca compreendidas.

Eu sorrio largo e falo alto, e reconheço minha história, minhas dores, e falo sobre isso hoje sem chorar, e continuo andando porque me recuso a permitir que a vida me derrube, que o mundo, injusto e desigual, determine meu lugar dentro de estatísticas. Confrontando todos os dados, resisto, e me faço diferente do que o óbvio me apresenta.

Lembrar da minha mãe é, sobretudo, observar o meu exemplo mais claro e próximo de coragem e doçura. Lembrá-la, lembrar sua partida, não me dói como outrora. Embora às vezes eu pense na dor que ela sentiu, embora outras vezes eu lamente profundamente não ter sabido antes sobre o que sei agora, só sei que a elevação que ela me proporcionou, para enxergar tudo como vejo hoje, claramente, é o maior presente que cultivo.

A dor por tê-la perdido nunca será maior do que a alegria de ter morado em seu corpo, me alimentado de seu leite, aprendido com suas mãos.

O coração que bate no meu peito, já bateu dentro dela, junto dela, em uníssono.

Ela sou eu e enquanto eu viver, ela nunca vai morrer.

As coisas importantes seguem vivas dentro de nós.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.