Foto: Divulgação/CPAPS

Entra na minha sala de atendimento o senhor Benedito acompanhado da esposa Maura. Ele pernambucano e ela alagoana, emigrantes para São Paulo no êxodo da década de 60 em busca de trabalho. Vieram da zona rural para trabalhos aqui na Baixada Santista, ela empregada doméstica, ele pedreiro. Ambos cegos de letras, sem oportunidade de frequentar uma escola, criaram seus filhos graças ao suor de cada dia. Para que servem as vogais e consoantes para quem usa a força física como sustento?

Nosso encontro foi motivado pelo adoecimento de “seu Benê”, que desenvolveu um câncer de pâncreas aos 74 anos. Ele, que por muitos anos foi alcoólatra, conseguiu parar de beber graças a união com dona Maura. Refere que, no auge de sua dependência química, tomou álcool de um posto de gasolina. Em 2019, o diagnóstico se deu depois de um quadro de “amarelão” pelo corpo, cujo termo técnico é icterícia.

Meu desafio, então, seria explicar a dois idosos analfabetos sobre um tratamento quimioterápico complexo que requer idas com frequências regulares a um centro de infusão de medicações, e explicar efeitos adversos de medicações sintomáticas conforme necessidade. Tarefa fácil?

A educação médica não nos prepara muito para essa situação, que é bem frequente na minha rotina. Mas também acredito que nenhuma educação formal nos prepara para este tipo conversa. Explicar um tratamento oncológico não é mais fácil para pessoas com pós-graduação strictu sensu, porque falar de um lugar não familiar é sempre um desafio. E ainda estamos falando de uma especialidade com uma linguagem muito técnica, o tal do “mediquês”.

A forma como usamos as palavras podem ser pontes ou muros, podemos nos aproximar ou distanciar. E isso não é exclusividade médica! Consigo fazer analogias aos profissionais do direito, aos economistas, aos contadores, aos políticos. Cada um no seu gueto, falando robustamente para quem entende sem tocar realmente os demais. Nosso mundo é setorizado, é difícil ampliar a visão de todos.

A última vez que fui ao banco, conversar com minha gerente sobre possíveis investimentos, saí de lá com um nó na cabeça com tantas siglas, porcentagens e termos técnicos. E olha que me considero uma pessoa curiosa, sempre tentando aprender coisas novas e explorar novos mundos! No fim, minha decisão foi tomada mais por ela do que por mim, que após muito esforço entendi superficialmente o meu perfil de investimento e o que era mais vantajoso para mim.

Se comunicar com o outro é mostrar aquilo que você tem dentro, então, cada um conta de um jeito. Adoro a frase de Alejandro Jodorowsky, cineasta, ator, poeta, escritor e psicólogo chileno, que diz “entre o que eu penso, o que quero dizer, o que digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo”.

O escutar do outro também é interferido pelo impacto do conteúdo da informação. Por isso, ao ouvir uma má notícia muitas vezes não conseguimos absorver muito do que foi dito. Saber ouvir não é uma tarefa fácil. Ainda mais na forma como a saúde é tratada hoje em dia, com consultas a cada 15 minutos, com 12 atendimentos por período.

As palavras não apenas informam algo novo, mas também geram sentimentos dentro de nós. Esses sentimentos são como ondas, podemos aprender a lidar com essa maré ou podemos nos afogar.

Por isso, os cursos de formação em medicina paliativa dedicam muito tempo a módulos sobre comunicação, desenvolvendo habilidades de comunicação verbal e não verbal para emitir mensagens. O emprego adequado de técnicas e estratégias de comunicação é medida terapêutica comprovadamente eficaz, que permite inclusive ao paciente compartilhar seus medos, dúvidas e sofrimento.

Isso é muito importante também na garantia da autonomia do paciente, que junto com a equipe profissional, pode decidir até onde está disposto a ir e a que sacrifícios está disposto a se submeter diante de alguma condição de saúde incurável e ameaçadora da vida.

Minha avó materna, vó Linda, diante do diagnóstico de um câncer de pâncreas avançado e metastático, o mesmo do seu Benê, não estava disposta a fazer quimioterapia. Para ela, a contrapartida do tratamento era algo não negociável, e ela optou por medidas de conforto, garantidas até seus últimos instantes. Isso não significa que ela não tenha sofrido, mas ela foi acolhida, respeitada e amparada por uma equipe multiprofissional que envolvia familiares, cuidadores e profissionais de saúde.

Seu Benê talvez não consiga ter a oportunidade de decidir sobre os rumos de seu tratamento. Isso não é uma questão de escolaridade, porque minha vó também não teve a oportunidade de estudar como eu tive. Mas é uma questão de autoconhecimento, de vivências prévias, de reflexão pessoal.

Eu, como profissional de saúde, poderia oportunizar essa reflexão a todos, mas também não fui muito treinada para isso durante minha graduação e especialização. Porque talvez isso também não seja ensinável tão facilmente. O caminho profissional me fez amadurecer mais, as vivências cotidianas e as trocas com os profissionais de outras áreas que trabalham comigo, em especial psicologia e serviço social.

Quando tento explicar um tratamento médico, o funcionamento de um medicamento no organismo com minhas palavras tento checar se a pessoa entendeu. Como faço isto? Deixo um espaço de escuta aberto, peço que ela se expresse com suas palavras, e digo que poderemos retomar posteriormente as dúvidas conforme elas forem aparecendo. Se percebo no outro que oportunizei tudo isto, cheguei no ponto.