Foto: Arquivo pessoal

Quinta-feira é o dia da semana no qual a prefeitura de Santos recolhe o lixo seco. Reciclável. Agora vivendo em uma casa, na divisa do Gonzaga com a Pompeia, sou eu quem separo nossas sobras burguesas da semana (ainda não da forma como eu gostaria) e as coloco do lado de fora da rua, em frente ao meu portão.

Gosto de fazer isso no finzinho da manhã, porque é o momento em que os catadores costumam estar por ali, trabalhando. Levo água para eles, e puxo conversa. Hoje fiz isso e conheci o Romão, ex-segurança, desempregado desde 2017, que me confidenciou sua história. Não sei exatamente em que momento do nosso papo disse a ele que minha esposa tinha morrido, há sete semanas. Ele respondeu dizendo que perdeu a sua mulher quando ela tinha 29 anos. Deixou-o só, com três filhos. O mais novo com um ano, ainda em amamentação.

Sua esposa morreu em consequência de um câncer de mama. Ele, então, dedicou-se a criar seus filhos órfãos de mãe. O mais velho é carrinheiro, a do meio casou e o mais novo se entregou às drogas. Foi preso porque traficantes denunciaram à polícia sua dívida com a boca. Os PMs, aliados do movimento, forjaram um enquadro, e o menino de 21 anos foi em cana. “E eu nem posso ir vê-lo, por causa dessa pandemia”.

Romão vive na zona continental de São Vicente. Depois da Ponte dos Barreiros, permanentemente interditada. Levanta todos os dias às cinco da manhã para vir a Santos, circular pelas ruas em busca de objetos para vender, sobretudo na feira do rolo do seu bairro, que é organizada aos sábados e domingos. Queria trabalhar, porque agora tem outros três filhos do segundo casamento, ainda pequenos, aos quais ele se dedica, uma vez mais. Entregaram a Deus suas vidas, são evangélicos, e por isso ele me diz que estão todos bem encaminhados.

Combinei com Romão que toda quinta-feira, quando ele vier, pode tocar a campainha e me chamar, que fazemos uma pausa, pruma água, um café. Que eu vou deixar separado – e vou mobilizar o pessoal aqui da minha vila – coisas que sejam úteis a ele. Romão me disse que todo tipo de eletrônico lhe interessa. Disse que pode deixar comigo. Ele me agradeceu, e confirmou que vai tocar sim a campainha, porque pausa pruma prosa faz falta no dia a dia.

Despediu-se com um toque de cotovelo, consciente que está de que o coronavírus não é uma gripezinha. “Nem posso sonhar em morrer, porque não quero que minha esposa passe pelo que eu passei”, me diz. Para na sequência me confidenciar que no auge de seu desespero, pouco depois da morte da primeira mulher, pensou em suicídio, eram muitas as responsabilidades. Chegou a subir numa ponte para se jogar. O tempo passou, a ferida não fechou, mas a vida seguiu.

Desejou-me sorte e toda a força para enfrentar esses dias difíceis do luto. Eu agradeci. Tive vontade de abraçá-lo, o que fizemos com os olhos por trás de nossas máscaras.

Fique com Deus, Romão, me despedi. E ele respondeu: amém.

Jornalista, escritor e produtor cultural. Um dos fundadores e atualmente diretor-executivo do Instituto Procomum. Cursa doutorado em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e tem alguns livros publicados no Brasil e no exterior. Vive em Santos, com seus dois filhos.