Foto: Varshesh Joshi on Unsplash

O mundo amanhece cheio de tristeza e ódio.
Os adventos tecnológicos fazem com que tudo chegue até nós, querendo ou não, em forma de notícia ou de mensagem, de memes ou de vídeos. E já não conseguimos imunidade contra tantas informações.
No meio deste oceano de dados me vejo perdida, a deriva, nadando a procura de qualquer pedaço de terra que me pareça uma promessa de salvação. Às vezes eu encontro pequenas ilhas, algumas tem arvores frutíferas, outras apenas areia fina, mas o grande ponto é que sempre existe muito oceano ao redor. Como se a possibilidade de respirar tranquila, sem medo de se afogar, fosse apenas algo momentâneo, nunca destinado a ser uma realidade permanente.
Questionar porque alguns indivíduos de nossa espécie fazem o que fazem é algo que permeia meus pensamentos todos os dias. Busco explicações biológicas, históricas, emocionais, psicológicas, espirituais, e fico sempre num meio termo entre algo que me parece plausível e algo que me soa como inacreditável.
Costumo observar primatas próximos a nós, do ponto de vista evolutivo, e leio sobre seus comportamentos sociais e suas dinâmicas de comunidade. Entendo os papéis de cada gênero, e sua importância para a manutenção de uma população estável e próspera. Faz sentido pra mim observar animais irracionais, instintivos e selvagens, e constatar que força física, por exemplo, é um dos fatores que determinam liderança. Mas quando olho por um lado mais comportamental, vejo que uma das grandes diferenças que o raciocínio nos proporcionou foi a capacidade de sentir e causar ódio.
Explico: Nenhum outro animal sente ódio. Este sentimento, especificamente, é próprio do Homo sapiens. Os outros animais fazem coisas para sobreviver, para garantir que seus genes sejam passados adiante, não existe uma intenção má por trás de tais ações. Quando um babuíno mata uma presa, não o faz por esporte, o faz para sobreviver e, ao mesmo tempo, manter seu mundo em equilíbrio. Não que ele saiba que o faz, mas porque vive de acordo com suas demandas, vive selvagem, honra seu espírito.
Quando um leão mata os filhotes de uma fêmea que encontrou na savana, não o faz para ferir a leoa, o faz para que ela entre no cio e ele possa perpetuar sua linhagem. Para que novos reis nasçam, para que o ciclo sem fim continue intacto.
Agora o Homo sapiens não. Este, por sua vez, pauta suas ações no desejo impensável de que o outro sofra. E fazendo isso, além da dor que gera no indivíduo para quem sua atitude se direciona, desperta o ódio de quem está ao redor. Por vezes desperta o ódio de toda uma população.
Até mesmo o ódio, sobre esta perspectiva, pode crescer a partir de diferentes sementes: Uma, da intenção de causar dor, de ferir ou matar. A outra, de empatia pela dor do outro, de indignação por determinada situação.
Passamos a vida tentando encaixar os sentimentos em caixas. Uma caixa para os bons, os que podemos sentir. Outra caixa para os “ruins”, para os que nos tiram do eixo e causam desconforto. Uma separação simplista demais para a complexidade do sentir.
Em relação ao ódio, especificamente, me parece justo senti-lo por inconformidade com a maldade. É justo que odiemos quem odeia o outro por nada, quem faz mal e finge não saber. Como diz a frase, não se tolera o intolerante.
O mais latente é que a cada novo dia eu consigo perceber algo errado na forma como nos ensinaram sobre as coisas. Observo principalmente minha vida, a única que conheço melhor que ninguém, e posso ver claramente o quanto uma educação superficial pode acarretar em problemas na vida adulta. Desde relacionamentos interpessoais, até a forma como lidamos com questões como nosso corpo e sexualidade.
Meus pais, como muitos dos pais de vocês, viviam relações muito longas não por terem construído estruturas sólidas pautadas em amor, respeito, compreensão. Ou até mesmo por existir um amor genuíno. Se mantiveram mais por falta de outras possibilidades, por medo, por comodismo, por causa de deus, por motivos desconhecidos e diversos. Minha mãe não conhecia o Feminismo, não sabia quais eram suas correntes, nem eu sabia antes das minhas.
E então precisamos aprender com o tempo e com a dor. Crescemos acreditando que o amor é um aturar sem fim, é um calvário que nos trará um prêmio no fim do martírio. Nos incutiram ideias de que casamento é um só, que homem é assim mesmo, e que nascemos para ser mães. Quando começamos de fato a viver – a sentir o desgaste de tentar nos manter numa relação tóxica, de uma maternidade real cheia de medos e lágrimas, de precisar aceitar um determinado comportamento no parceiro que te agride mas você se convence que é assim mesmo – vemos que não pode ser assim, não pode ser tão apertado viver.
Nós aprendemos a suportar a dor. Principalmente nós, mulheres. Pelo bem dos filhos, pela falta de recursos financeiros, por não espreitar esperança.
Silenciamos, criamos homens para parecerem fortes e sólidos quando por dentro choram num canto em posição fetal. Não falam sobre o que sentem, explodem em violência e agressão como se não pudessem ser questionados.
Quem é você para não ser questionado?
Precisa-se ouvir o desconforto e, a partir daí, precisa-se questionar tudo.
A dúvida é o começo da luz.

Kamila Drieli
Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.