O mar de Santos visto por Lia Rangel, um ano atrás

“Essa luz não é dia, amor; eu sei.
É um meteoro que o Sol exalou
Só pra servir de tocha pra você,
E iluminar seu caminho para Mântua”.
(Romeu e Julieta, Shakespeare).

Quando ouvi falar dele, e não foram muitas vezes, soube que seu nome era Vitório. Recentemente, em buscas pela minha ancestralidade, descobri que deu entrada no Brasil como Alceste Vittorio Savazzoni. Resta a dúvida se, na Itália, Savazoni se escrevia com um ou dois zs: uma parte da família é Savazoni; outra, Savazzoni. Faz sentido os dois zs, que em português têm som de ç. Mas o meu, por exemplo, tem um só. Como o de meu pai e o de meu avô.

Vitório era de Mântua (em italiano Mantova), na Lombardia, província ao norte da Bota. A terra para onde Romeu fugiu, em seu exílio, à espera de Julieta. Não sei o que fazia nem como vivia por lá, na cidade de meus ancestrais que existe há dois mil anos e na qual nunca pisei. De acordo com documentos recuperados por meu primo Eduardo, foi batizado em Castel d’Ario, um pequeno vilarejo e se casou na Comuna de Roncoferraro, pouco antes de cair no mundo.

Em 1891, num navio da companhia G.B Lavarello, fundada pelo capitão Giovanni Battista Lavarello, deixou Gênova e no dia 25 de julho desembarcou no porto de Santos, com a esposa, Amabilia Oltramari e a filha Deomira.

A Santos que ele encontrou já era uma cidade cosmopolita, abolicionista, que havia decretado o fim da escravidão dois anos antes da assinatura da Lei Áurea. Em 1874, tinha uma população de 9191 pessoas, sendo 1606 escravos e cerca de 900 portugueses. Em 1886, 15.605 pessoas habitavam a cidade fundada em 1543, destas, apenas 57 escravos. Vitório foi um dos inúmeros italianos pobres que vieram para a América em busca de novas oportunidades de vida e acabou por integrar, sem saber, a política de embranquecimento patrocinada pelas elites brasileiras. Com sua jornada intercontinental, contribuiu para a forja da maior população italiana fora da Itália.

Não sabemos quanto tempo permaneceu em Santos depois de sua chegada. Há vestígios de que tenha tomado o trem e ido trabalhar em lavouras de café na região de Mogi Mirim, em Santo Antônio da Posse. No jornal Il Pasquino Coloniale, do dia 4 de julho de 1925 (um dia eu viria a nascer num 4 de julho), uma nota de poucas linhas pede notícias de seu paradeiro. No texto, informam que ele teria vivido em Franco da Rocha, na região do Juquery, e que poderia estar vivendo em Campinas. 

O que queriam com ele os editores do jornal? Minha prima escritora, Adrienne, pioneira nesta investigação, especula que Vitório poderia ter algum tipo de envolvimento político. Era um anarquista? Socialista? Tomara não fosse fascista.

No Brasil, teve outros filhos, um deles, o meu bisavô Jayme, que se casaria com a portuguesa Beatriz Martins, governanta da casa do Dr. Franco da Rocha. Juntos tiveram cinco filhos, entre os quais Alécio Savazoni, meu avô paterno, que já morreu há muitos anos. Segundo meu pai, cujo nome é Jaime, como seu avô (com i não com y), Alécio dizia que costumava visitar seu nono Vitório em Santos, e que ele vivia no bairro do Jabaquara, perto do Matadouro Municipal, onde chegou a trabalhar, porque era açougueiro de profissão. O Matadouro foi fechado na década de 1970.

O Jabaquara, bairro que deu origem ao glorioso Jabuca, time de Plínio Marcos – cuja sede atual fica na Caneleira – no século XIX abrigou o segundo maior quilombo da história do Brasil, articulado pelo pioneiro Quintino de Lacerda. É também território da Portuguesa Santista, a Burrinha, e da Santa Casa de Misericórdia. Será que Vitório frequentou alguns desses estádios? Algum dia foi internado no hospital? Costumava andar de bonde até a praia, para se banhar?

Gosto de imaginá-lo no navio a vapor que o trouxe da Itália para cá, a inóspita travessia do Atlântico, a chegada neste Novo Mundo, tudo por viver, a pobreza para esquecer, o avental sujo de sangue, a faca afiada de desossador. Gosto de imaginar minha trisavó, cujo nome é poesia, Oltramari, “além do mar”. Gosto de pensar que eu também sou um Oltramari, embora o patriarcado tenha se incumbido de impedir que esse sobrenome chegasse até a minha certidão de nascimento. Eu, um “além-mar”, voltei para partir, lançar-me nessa imensidão azul, singrar o oceano, meu ancestral. 

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Em minha história com Lia, muitas eram as sincronicidades. Certo Natal, descobrimos que nossas tias, Dete e Bia, irmãs de nossas mães, moraram na mesma república em Taubaté; eu morei com um de seus melhores amigos de infância quando cheguei a São Paulo; nossos pais estudaram na mesma cidade nos anos 1970, o meu, Medicina, o dela, Arquitetura: justamente em Santos. Gosto de pensar que, como naquele verso de “Exagerado”, do Cazuza, nossos destinos foram traçados na maternidade, que precisávamos nos encontrar para viver esse grande amor.

Meu sogro mal se lembra de sua temporada santista. Conta que costumava frequentar a praia do Éden, no Guarujá. Por causa disso, uma vez, fomos até lá, àquela prainha minúscula que fica no sopé de uma trilha. Paulinho veio transferido porque a escola experimental em que estudava, em São José dos Campos, foi fechada pela ditadura. Já meu pai era o oposto. Seu amor por Santos era e é comovente. Naquela década dos 90 milhões em ação e do tricampeonato mundial de futebol sob comando do Rei Pelé, estudou Medicina e pretendia permanecer na cidade, o que não ocorreu por uma sucessão de descaminhos que resultou em seu regresso a Jundiaí.

O curioso que todo esse amor de Jaime por Santos nasceu em São Vicente, a outra face da ilha, mais velha, bela e vilipendiada. Ele tinha nove para dez anos quando passou suas primeiras férias de verão em um apartamento alugado por seu avô materno, o Nono Natalino, que também viera da Itália, no início do século XX, e no Brasil se casou com a sua prima Deolinda. Nono e Nona tiveram cinco filhos, entre os quais a minha avó Emília, de quem tenho muita saudade. 

Meu pai conta que esse apartamento que Nono alugara fora para vir fiscalizar a construção de um outro que havia comprado no Edifício Benedito Calixto, na rua Martin Afonso, no centro da mais antiga cidade do Brasil. Naquele quarto e sala do avô, passou férias de janeiro e julho inesquecíveis. Entre suas memórias mais remotas, estão a falta crônica de água e as filas homéricas na Biquinha para encher os garrafões. Quem se aventurava, ganhava de presente insolação e queimaduras.

Naqueles anos 1970, jovem, casado, pai de meu irmão André e estudante de Medicina, trouxe nossa família para viver nas imediações da Conselheiro Nébias.

Cresci ouvindo minha mãe narrar suas incursões pela praia, eternizadas em uma foto em preto e branco de meu irmão diante do mar do Boqueirão. Gosto especialmente da história da menininha que, nas ondinhas à beira-mar, pedia para lavar o pescoço do Andrezinho. Durante nossa infância e adolescência em Jundiaí, André sempre dizia que viveria em Santos, mas foi o único dos três filhos de Jaime e Solange que acabou não vindo. Optou por outra ilha, mais ao sul, mais bonita.

Do fim dos anos 1970 até meados dos anos 1990, viemos sempre a Santos para visitar minha avó e meu tio, que acabaram se mudando para cá. Quando Vítor, meu irmão caçula, entrou na mesma faculdade de Medicina em que meu pai estudou, já nos anos 2000, Jaime resolveu juntar cobres para comprar um apartamento.

Enfim, era chegada a hora de ter seu canto na cidade que tanto amava.

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Quantas viradas de ano passamos em Santos na casa de meu Tio Beto? Não faço ideia. Se fecho os olhos, ainda posso ouvi-lo gritando, a partir das nove da noite, “meia noooooite”, o riso franco a ecoar pela sala. Eram, por exemplo, as únicas ocasiões em que eu encontrava com meu avô Alécio, o neto de Vitório.

Beto veio parar na cidade por acaso. Chegou em março de 1980, com planos de ficar três meses, comissionado para trabalhar na obra do reservatório do morro da Nova Cintra, que estava sendo realizada pela Sabesp, empresa a qual serviu até se tornar superintendente e se aposentar. A obra é um colosso de engenharia, um túnel dentro do morro, e não estava indo bem, até o Sava, como alguns o chamam (e a mim também), resolver a encrenca.

Forasteiro, se hospedava no Hotel Maracanã, perto da divisa. Uma das tantas edificações que foi demolida para dar lugar a um arranha-céu. Minha tia Sônia e meus primos Rafael e Raquel moravam em Bragança. Beto passava a semana em Santos, e os fins de semana com sua família. Um arranjo insustentável, que não poderia durar muito. Quando a obra do túnel terminou, não quiseram deixá-lo partir. A Sabesp lhe ofereceu o posto de coordenador de obras da Baixada Santista, litoral e Vale do Ribeira e ele aceitou. Alugou um apartamento mobiliado na rua Arthur Assis, no Boqueirão, e logo depois trouxe a mulher e os filhos para viverem na cidade. Primeiro, moraram na esquina do canal 4, naqueles prédios brancos em estilo neoclássico, depois na Ponta da Praia, e por fim no Gonzaga.

Passei inúmeras férias em Santos em algum desses apartamentos e também nas casas de minha avó, que, seguindo os passos do filho mais velho, resolveu mudar-se para cá. Meu tio sempre me diz que nunca pensou em morar em Santos. Quando ascendeu na carreira, passou a trabalhar em São Paulo, chegou a cogitar se mudar para a capital, mas aí a família, adaptada ao clima praiano, não queria. Quando Rafa, meu primo vinha passar férias conosco, costumávamos tirar sarro do “tu mal conjugado” que caracteriza a fala dos santistas. Agora, meus dois filhos falam assim e eu mesmo me pego disparando um ou outro tu por aí, o verbo sempre conjugado na terceira pessoa. “Tu sabe desde quando minha família está nestas terras, bicho?”.

Em 1995, Rafa sofreu um trágico acidente de carro e morreu, aos 19 anos. Eu tinha 15, e fiquei dilacerado. A tragédia pôs fim aos encontros de réveillon e as férias nunca mais foram as mesmas. Achei que nunca mais pisaria em Santos. Não queria.

Após a perda do filho e de sua aposentadoria, meu tio acabou construindo uma casa espaçosa e confortável em Mairiporã e começou a passar temporadas cada vez mais longas por lá. Nos vimos muito pouco desde que vim morar aqui. Em uma dessas raras ocasiões, fomos jantar no apartamento deles e Lia ficou impressionada com um quadro pintado por minha tia. Creio que Sônia disse que o daria a ela, mas o tempo não permitiu que isso ocorresse. Em 2017, depois de uma década lutando contra o câncer, minha tia Sônia morreu. No ano passado, foi a vez de Lia.

Eu e Beto somos os viúvos da família.  

* * *

O oceano é meu ancestral. Santos é minha ancestral.

O fantasma de Vitório percorre as ruas do Jabaquara; o de Rafael, eu sempre o vejo quando caminho pelo canal 3; outro dia mesmo avistei pelas ruas do Gonzaga uma bonita mulher que parecia ser minha tia Sônia. Creio até que a ouvi gritar “venha cá, meu docinho de coco”; Lia, eu a vejo em todas as esquinas, quando pedalo pela ciclovia ou sento-me em algum dos bares nos quais costumávamos beber uma cerveja gelada. Eu a sinto sobretudo quando me banho no mar oleoso e acinzentado, esse mar verde-musgo, único.

Outro dia, saí com meu pai em direção a São Vicente para revisitarmos onde ficava o apartamento do Nono, mas não chegamos até lá. Apenas caminhamos pela praia, viramos na Ilha Porchat, e passamos na escola dos meus filhos, que fica no Itararé. Ainda precisamos fazer essa caminhada direito. Na volta, topei com minha filha e alguns amigos preparando-se para surfar. Ela, com sua roupa de neoprene, a prancha debaixo do braço, o leash amarrado ao punho. Fiquei observando-a entrar no mar, cruzar a arrebentação, e posicionar-se para pegar a onda. E ela veio.

Faz dez anos que me mudei para Santos, decisão tomada num rompante em outubro de 2010, para satisfazer o desejo de Lia de viver perto do mar e o meu de reatar laços com meus familiares. Em janeiro de 2011, quando passei a viver no pequeno e torto apartamento ao lado da igreja do Embaré, nem fazia ideia do quão longeva era minha conexão com a cidade: do vapor que trouxe Vitório, do apartamento de Natalino e Deolinda, dos descaminhos de Jaime, do acaso de Beto. De lá para cá, os nascimentos de duas sobrinhas e um sobrinho, muitos amigos conquistados, canções escritas, rupturas e a morte de meu grande amor.

Olho os navios que entram pela barra e ouço o vento: Oltramari.

Quando me perguntavam: por que Santos? Eu sempre respondia algo diferente, inventava uma história. E diante da questão: mas você é de lá? Não sabia o que dizer.

Agora eu sei: nunca fui, sempre serei.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Jornalista, escritor e produtor cultural. Um dos fundadores e atualmente diretor-executivo do Instituto Procomum. Cursa doutorado em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e tem alguns livros publicados no Brasil e no exterior. Vive em Santos, com seus dois filhos.