Fotos: Arquivo Pessoal

Em julho de 2017 descobri que estava grávida.

O medo imediatamente bateu em minha porta – ou em minha barriga – e me trouxe, ao mesmo tempo, mil questões que eu jamais tinha imaginado.

– Como criar um filho solteira? Como enfrentar um mundo cruel, cheio de maldades e dor? Como suplantar as minhas próprias dores, da minha infância, de não ter mais a minha mãe, e mudar o rumo da educação na minha família? Como seria amamentar? Como seria parir naturalmente? Como seria enfrentar uma sociedade que com absoluta certeza já me julgará só por estar grávida e não estar num relacionamento estável?

Ou seja, muita coisa para ocupar a cabeça e, a partir dessas dúvidas, surgiu a mais significativa delas: Será que eu quero – e vou – passar por tudo isso?

Eu tinha 28 anos, 1 diploma, 2 empregos e incontáveis sonhos.

Mas eu também sou absolutamente favorável ao aborto e, dentre os pensamentos, seria hipócrita dizer que não o cogitei como uma opção. Pensei em tudo e, por fim, decidi que queria – e iria – ter este filho.

A partir daí começaram os estudos. Lia artigos sobre educação neuro-compatível, sobre a importância da amamentação, sobre o parto normal. Assistia documentários sobre desenvolvimento infantil, sobre introdução alimentar, sobre como seria mais adequado colocar o bebê no berço. Literalmente pesquisei tudo. Fiz o plano de parto. Me muni da maior quantidade de informação possível – sempre preocupada inclusive com a confiabilidade das fontes – para me sentir mais segura.

Foi assim que passadas 40 semanas dei entrada no hospital da minha cidade, Bonito, no Mato Grosso do Sul, por volta das 13h30. As contrações começaram por volta das 5h da manhã do mesmo dia.

9 de fevereiro de 2018.

Todos os meus estudos, todas as informações absorvidas e toda a segurança que os meus privilégios me concederam não impediram que um profissional, ao me atender, introduzisse um comprimido dentro da minha vagina sem o meu consentimento. Estando eu ali, consciente, acordada e supercapaz de decidir sobre o que seria melhor pra mim. Se tivesse sido consultada sobre o MEU corpo e o que eu gostaria que entrasse, ou não, dentro dele.

Lembro da sensação de ter sido invadida e violentada, mas tudo isso foi suprimido pelo trabalho de parto que seguia cada vez mais intenso e pelas contrações que me faziam esquecer de tudo ao redor.

Bento nasceu.

Em fevereiro de 2021, uma amiga pessoal me mandou mensagem dizendo que relataria os horrores sofridos durante o seu próprio parto, no mesmo hospital, anonimamente, para um jornal. Eu a encorajei, principalmente por ser algo anônimo, que não traria grandes consequências, pelo menos num primeiro momento, para ela mesma e sua vida social numa cidade pequena, onde todos se conhecem, e onde as notícias se espalham de forma absolutamente equivocada.

Acontece que no dia seguinte, ao ler a matéria, verti em lágrimas ao ver o nome da minha amiga lá, para quem mais quisesse ver e pesquisar no Facebook. Flávia Chaparro. Ela teve coragem o suficiente para dar o seu nome e dizer “Eu sofri essa violência e isso não vai ficar assim”.

Nos dias que se seguiram, como é possível imaginar, surgiram mil posts nas redes sociais defendendo o profissional acusado. Diversas mulheres relatando seus partos e toda a “magia” vivida naquele momento, e todo o tratamento excelente recebido.

Eu fiquei feliz que tantas mulheres tenham recebido o tratamento adequado, que tenham tido suas experiências felizes para sempre lembrar. O que me deixou profundamente triste foi observar que os posts não eram apenas em defesa do profissional, mas sim para descreditar as palavras de uma outra mulher que não teve a mesma sorte. Que não tinha um homem como acompanhante, que não podia se posicionar por encontrar-se em total vulnerabilidade naquele momento.

Me deixou estarrecida ver que o patriarcado foi tão bem estruturado que mulheres preferem defender um homem ao invés de parar e pensar “Peraí, eu quero primeiro ouvir essa outra mulher melhor”.           

Mas existe esperança. Juntaram-se à Flávia, com total apoio da Defensora Pública Thaís Sagin, mãe de 3 meninos, outras 11 mulheres. E eu sou uma delas. Cada uma de nós relatou em detalhes todo o processo vivido no parto, todas as violências sofridas, por menor que parecesse, durante este momento que deveria ser nosso, de respeito e incentivo à nossa natureza e autonomia.

Este movimento de mulheres resultou num TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, que beneficiará TODAS as mulheres da nossa cidade, as que denunciaram e também as que defenderam, e quem mais vier a parir no hospital daqui. Este termo torna mais rigorosa a observação e a cobrança sobre a conduta dos profissionais envolvidos no parto. Uma vitória que mostra o quanto a união entre mulheres é poderosa.

Nos dias 4 e 5 de agosto, semana passada, aconteceu o Primeiro Congresso pelo Parto Humanizado da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul. Eu, a Defensora Pública Thaís Sagin e a Socióloga Aja Bryant participamos com nossas presenças e vozes representando o Coletivo Mães de Bonito e o Movimento de Mulheres que se colocou e conquistou o TAC como resultado.

Foi uma HONRA estar ao lado de tantas mulheres incríveis – e também homens – definindo os próximos passos dessa luta que começou em meados de 1950 e está bem longe de acabar.

Nossos corpos, nossa biologia e natureza estão prontos para gestar e parir. O que precisamos hoje é de informação precisa, de dados concretos e de incentivo à autonomia plena, o retorno ao protagonismo que nos subtraem desde que nossa sociedade se estabeleceu como é. Só assim poderemos escolher o que é melhor para nós de forma consciente.

Não importa como era antigamente, como foi aprendido nas universidades, como desejam que permaneça o sistema. O que importa é nossa integridade física, psicológica e emocional. O que importa é nascer com dignidade e sermos tratadas como seres humanos capazes.

O Congresso, primeiro de muitos, me fez vislumbrar a possibilidade de dias melhores e de tratamentos igualitários para todas, sem privilégios de raça e classe, sem tirania por parte dos que se consideram detentores do saber.

Tantas mulheres unidas me trouxeram novamente esperança de que nós, juntas, podemos sim abalar as estruturas e redefinir a dinâmica do mundo.

Obrigada a cada uma de vocês.

Obrigada por não me permitirem desistir.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.

Kamila Drieli
Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.