Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

“Simbolicamente morro várias vezes

só para experimentar a ressurreição”.

(Clarice Lispector).

“A vida muitas vezes capricha”. Assim começou a nossa conversa. Fazia sol em um dia frio de inverno. Estávamos perto de um luminoso corredor de um hospital centenário com o pé direito alto. Era um dia barulhento, muitas pessoas transitavam por nós. Macas, cadeiras de rodas se deslocavam para cumprir uma agenda de exames. Não ouvíamos os pássaros, nem o vento e nem o mar.

Renata me disse isso com lágrimas nos olhos, mas sem raiva ou revolta. Havia ali uma aceitação. Entendia o ciclo natural. Senti que esse diálogo me deixou mais desagasalhada. A cena principal era um quarto com meia-luz, onde um enfermo pai fazia seu processo de passagem. Era um lugar compartilhado. Então, um biombo azul tentava trazer algum ar de privacidade. Ao lado dele a filha lia a obra de Masaharu Taniguchi, fundador da filosofia Seicho-no-ie. Entoava, amorosamente a “Sutra Sagrada Chuva de Néctar da Verdade”:

“DEUS

Um dia, o Anjo vindo

Seicho-No-Ie, recita:

O Deus da Criação

transcende os cinco sentidos

e também o sexto sentido;

Sagrado,

Supremo,

Infinito,

Mente que permeia o Universo,

Vida que permeia o Universo;

Lei que permeia o Universo;

Verdade,

Luz

Sabedoria

Amor Absoluto

– isto é a Grande Vida”. (…)

Me agasalhei, ao presenciar esse momento.

Após cerca de dez minutos da minha saída do quarto o enfermeiro me pediu para dar uma olhada no senhor William. Ele já tinha partido. Renata estava profundamente pesarosa, mas relatou que foi um dos momentos mais bonitos de sua vida. De uma potência sagrada. “Que bom que eu estava com ele, não queria que fosse com outra pessoa e nem que ele estivesse sozinho”.

E assim eu, anacronicamente, volto no tempo.

Retorno para vinte de julho de 2015, quando eu vivi uma experiência semelhante. Também era uma tarde de inverno, mas não fazia frio. Pelo menos não para mim. Talvez as emoções aqueciam meu coração como brasa. Eu estava ao lado da minha vó Linda no momento de sua passagem por um câncer avançado. Não entoei nenhum mantra, mas permaneci com uma das mãos sobre seu coração. Atritava seu peito num gesto para esquentar nossos corpos e lhe dar coragem, assim como faz com as mãos um mergulhador prestes a pular numa piscina em um dia frio. Com a outra mão eu fazia carinho em sua cabeça e dizia com uma surpreendente calma que ela podia descansar. Reiterava que estávamos bem, que ela tinha tido uma vida plena e que estaria sempre conosco, da pele para dentro.

Aceitar a morte como um processo natural é um desafio. É tamanho este medo que a finitude tem sido roubada de nós. O morrer está isolado da vida cotidiana.A experiência de envelhecer e falecer, que era organizada e vivida como uma tradição e entendida como fato natural, vem em progressiva desvalorização. Se tornou promíscuo. Até então, havia o quarto do moribundo em que a família entrava em contato intimamente com os sons, odores e as cenas do processo. Agora, a morte foi escondida na assepsia hospitalar. Mas apesar dos muros das instituições, ela nos assola como uma chuva de intensos ventos, que deixa à mostra as estruturas de sustentação da parede, como um corpo de pele corroída que nos permite ver por dentro. A morte nos escancara a intimidade dessas paredes, porque buracos e frestas se abrem.  

É preciso ter coragem para viver a morte.

Mary não era dada aos clichês do viver. Era bastante singular. Nasceu na primavera de 1937 e era uma apaixonada pelas palavras. Não que tenha sido fácil para ela escrever. Era difícil como quebrar muros. Mas não havia vida fora da escrita. Redigia por algo maior do que ela mesma poderia explicar. Era uma faminta do verbo. Assim se entendia e se expressava. A primeira vez que compreendeu uma poesia, aos quinze anos, descobriu que tinha muitas lágrimas a transbordando do lado de dentro. Ouviu seu avô recitando Alberto Caiero:

“Num meio-dia de fim de Primavera

Tive um sonho como uma fotografia

Vi Jesus Cristo descer à terra

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe”.(…)

Ali sabia o seu futuro. E assim viveu seus oitenta e três anos de forma autêntica. Sem filhos, dedicou-se à educação infantil, sendo coordenadora de uma escola, e à escrita. Nascida do Estado Novo, enfrentou preconceitos por ser tachada como solteirona. Mas não queria a prisão de um casamento, queria a liberdade do conhecimento. Quando se viu atravessada por um câncer, apurou seus sentidos para a finitude. Logo no nosso primeiro contato me questionou:

– Será que sentirei saudade de mim quando eu morrer?

Essa pergunta me desconcertou. Em geral, demoramos muitos encontros para tocar no tema do morrer. Mas ela estava ávida para compreender o processo e participar dele ativamente. Logo respondi:

– Mary, o que você espera de mim?

– Juliana, sou uma pessoa inteligente, sei a resposta, sei que vou morrer. Há uma chance razoável de que eu morra nessa cama de hospital. Tudo que eu espero de você e de seus colegas é que amenizem minha dor. E eu gostaria de não ter tubos, porque morrer será minha última inspiração. Vai que algo saia de mim como um míssil -, disse parafraseando o poeta alemão Charles Bukowski? Acharia bem frustrante perder meu último momento de consciência.

Sendo assim, discorremos suas diretivas antecipadas de vontade e traçamos seus cuidados de acordo com sua biografia. Volto para casa em silêncio. Nenhum ruído externo é capaz de me distrair. Me reconecto com a minha vida e ressurjo. A cada morte que eu presencio me reinvento, rasgo minha pele já curtida pelo sol e olho para meus medos e meus desejos. Afinal, a poeta Clarice Lispector já me alertara de que “a verdade é sempre um contato interior inexplicável”.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.