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O adoecimento tem uma capacidade de mobilizar transformações pessoais. Estar diante de uma enfermidade grave, com a possibilidade de perder a vida, abre uma nova perspectiva. Questionamos escolhas, desenvolvemos arrependimentos e, depois dessa experiência, pode-se não ser mais o mesmo ou a mesma. Qualquer crise pode nos questionar a irracionalidade do que então era considerado normal.

Lidar com uma doença crônica é abrir mão progressivamente de papeis sociais construídos por uma vida inteira. É perder a capacidade de trabalhar, não conseguir executar tarefas rotineiras, sentir diminuir a energia vital, necessitar cada vez mais de assistência para atividades de autocuidado até um dia que sair da cama é tão difícil, que se deve escolher entre tomar banho no chuveiro ou almoçar na mesa. Significa fazer escolhas difíceis. A travessia nos deixa diante das limitações físicas em uma sociedade que espera que sejamos consumidores e produtivos. Não temos tempo a perder, e nem para adoecer….

O que a pandemia nos trouxe foi um adoecimento em massa da população mundial. Acabou que todos nós fomos atingidos com a possibilidade, mesmo que remota, de morrer. Junto com isso veio a reflexão inerente a esses processos. Na inércia do cotidiano acelerado, proporcionado pelo sistema capitalista, não pensamos sobre as desigualdades da sociedade enferma que admite riqueza para alguns, que não briga por uma proteção social universal e que não valoriza os bens naturais.

Quarentenados dentro de nossas casas, do que nos adianta ter cinco pares de sapatos novos? O consumo é um dos grandes pilares da nossa forma de viver neoliberal que também deve ser questionado. O amor ao dinheiro, a obsessão por bens de consumo, o acúmulo de patrimônio, a precificação da vida, o dinheiro como “linguagem universal” que compra a tudo e a todos. Tudo isso pode ser repensado.

O momento revela o quanto somo complacentes com questões críticas que deveriam ser intoleráveis. O que significa o país funcionar com doze milhões de desempregados ou com trinta e oito milhões na informalidade não ganhando o suficiente? Um quadro de anormalidade despercebida. Atualmente esse quadro está agudizado e sendo revelado de forma dramática. É irracional qualquer sociedade permitir que boa parte de sua população viva em favelas sem nenhum tipo de segurança, bem-estar, exposta a riscos e vulnerabilidades possíveis. E a sociedade tolera isso, estamos na inércia.

Isso, sem falar do desmatamento predatório e consumo dos bens naturais. Num planeta com recursos finitos, nossa infinita ganância nos asfixia. A mineração, por exemplo, acaba com reservas e foi a responsável pelos maiores crimes ambientais. Entretanto, é indispensável para manutenção do padrão de vida e avanço da modernidade e tecnologia? Até que ponto que, em nome do desenvolvimento, vamos destruir o planeta?E a nossa Amazônia sendo liquidada com um aumento exponencial da derrubada das árvores?

Mediante um cenário tão triste, podemos nos reinventar? Penso que o momento é oportuno para o resgate da solidariedade e esta pode nos tirar do grande buraco em que estamos atolados. Será que a atual renda emergencial pode virar uma renda básica sendo sustentada no futuro? E, se garantida uma renda universal básica, a população vai pode reinventar um novo propósito para a vida? Qual será a preocupação se não for mais ganhar dinheiro?

Abrem-se frentes importantes, cabe à sociedade se organizar para conseguir avançar e isso depende de ação política e de pressão popular. E, quem sabe, ao final desse momento histórico, teremos virado uma esquina para um mundo melhor.