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“Da tua casa pra minha

Tem um riachinho no meio

Tu de lá dá um suspiro

E eu de cá suspiro e meio”

Cantiga popular

Fiz quarenta anos em quatorze de novembro de 2020. Quarentenada, não festejei com amigos. Fiz um lanche na casa da minha mãe para pequena parte da minha família. Como presente, recebi um vídeo com depoimentos de amor, daqueles bem emotivos. Recebi explícitas demonstrações de afeto de parentes, amigos próximos e de amigos que não via há muito tempo, o que me tocou muito.

Dentre as diversas reflexões que me invadiram depois desse presente, a mais potente é como criamos um círculo de afetos que nos engloba e dança ao nosso redor como uma ciranda. Como uma cantiga de rodas, ela é dinâmica, muitas vezes estamos próximos de um dos membros e, logo depois, nos aproximamos de outro. Talvez a roda perca alguns brincantes com o tempo. Mas com as relações da vida, novos participantes estarão de mãos dadas cantando juntos, às vezes com canções mais velozes e alegres, outras vezes mais vagarosas e tristes, mas sempre girando.

Aniversariar representa refletir. Não deixa de ser uma data simbólica em que planejamos um novo ano, novos sonhos e projetos. Como um novo caderno com páginas em branco que podem ser preenchidas com a liberdade de um futuro por vir. As felicitações mais comuns envolvem palavras como amor, sucesso, felicidade, saúde e paz. Neste ano, em especial, ouvi muito o… “Ah, agora você está no time dos quarenta”!

Curiosamente, ninguém veio com a frase também clichê que a “vida começa aos 40”. Me diverti bastante pensando no porquê quase todas as pessoas me lembraram que agora sou uma quarentona. Talvez essa narrativa venha ao encontro com o terror de envelhecer, com as mudanças físicas que se acentuarão daqui por diante que nada mais são do que as marcas de tempos vividos. As importantes marcas do viver, que me fazem ser quem eu sou, e me fazem ter também memórias e não somente sonhos.

Mas, desde que comecei a trabalhar na oncologia, tive experiências de felicitar pelo aniversário pessoas em fases avançadas de doença. Algumas até com poucos dias a semanas de vida. O que dizer? Me soam bastante inapropriados desejos como saúde e sucesso. Aliás, me pego pensando aqui no que é sucesso. E como há uma grande variação de sua interpretação a depender dos valores individuais de cada um. Desde então, reflito melhor antes de felicitar alguém cujo tempo pode ser curto. Como desejar sonhos que indicam vida e futuro para alguém que está próximo da morte? Para mim, ainda é um grande dilema.

A primeira vez que pensei nisso foi ao acompanhar seu Cláudio, um senhor que faleceu poucos dias após seu aniversário. Ao tentar parabenizá-lo por seu dia especial, me vi sem palavras, com grande dificuldade em fugir das expressões corriqueiras usuais. Também pensei que deveria ter dito a ele palavras de afeto e acolhimento por todos os preciosos dias, não somente aquele em que ele nasceu. Minha grande amiga e enfermeira Lenita, que compartilhou os cuidados com seu Cláudio, se viu na mesma situação, e até hoje conversamos sobre como essa vivência transformou a nossa forma de parabenizar. Desde então, desejamos um tempo presente feliz, um dia amoroso, que as pessoas coloquem a alma nas belezas do dia e da noite.

Em janeiro de 2020, fiz uma viagem ao Ceará, uma imersão no sertão do Cariri, me aventurando por preciosidades da cultura brasileira. Dentre os tesouros visitados, estava o Quilombo Carcará na zona rural da cidade de Potengi, a quilômetros por uma árdua estrada de terra que faz jus à inspiração da canção “Carcará, lá no sertão, é um bicho que avoa que nem avião, é um pássaro malvado, tem o bico volteado que nem gavião”.

Após adentrar em áreas remotas do sertão, chegamos à comunidade conhecida por ser brincante do Toré. Essa é uma espécie de Ciranda e Côco passada de geração para geração, herança da miscigenação indígena e africana. Mulheres e crianças, hoje regidas pela mestre Bizunga, nome em homenagem a um beija-flor, têm o costume de brincar, enquanto os homens tocam sua banda de pife. Em roda, cultuam o brilho de meninos e meninas que vivem dentro de todos nós, independentemente da idade. Entrei na roda acompanhada da minha criança, a Juju, e cantei em coro:

“Olha o passarinho, Dom Miné

Caiu no laço, Dom Miné

Dais um beijinho, Dom Miné

E dois abraço, Dom Miné”

Ficamos até anoitecer no Quilombo Carcará, vendo o nascimento da noite e das estrelas. Não havia uma grande lua, mas estávamos iluminados por toda a experiência vivida.

João Guimarães Rosa, escritor, diplomata e médico, disse que a felicidade se acha no descuido. Talvez ao tentar correr atrás dela a gente se desencontre. Talvez a alegria e cada instante seja viver o tempo presente, seguindo a nossa criança na ciranda que nunca para de rodar.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista