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“O valor das coisas não está no tempo que elas duram,

mas na intensidade com que acontecem.

Por isso existem momentos inesquecíveis,

coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”

(Fernando Pessoa).

A relação médico-paciente não é construída de forma instantânea. O tempo é importante para solidificar uma confiança que permanecerá dentro de cada uma das partes. A doença crônica, em geral, tem uma longa evolução e permite a construção de uma relação que é essencial nas tomadas de decisões na fase final de vida.

Muitas são as perguntas sobre os cuidados dos enfermos com doenças avançadas e progressivas. O médico deve auxiliar, com seu conhecimento técnico, avaliando a interação entre a biografia e a patologia e decidir o que é adequado para esses delicados momentos.

Paciente vem do latim patientia e significa alguém que tem a “virtude, a paciência para suportar sofrimentos sem queixa”. Mas os que adoecem são pessoas com histórias, opiniões e percursos, não são enfermos que seguem apenas determinações médicas.

Isso tem sido desconstruído com o novo modelo deliberativo atual e a valorização da autonomia. A autonomia é constitucional e deve ser garantida na boa prática médica. Isso não significa delegar à pessoa a decisão técnica, ainda mais porque vestidos de emoção ou com sintomas físicos, tudo fica ainda mais complicado.

Significa instrumentalizar a pessoa e familiares sobre a história natural da doença, explicar sobre os cursos possíveis de evolução e, juntos, definir individualmente qual será o melhor plano de ação para cada caso. Às vezes, o que as pessoas precisam é saber fazer as perguntas certas para que os profissionais de saúde as ajudem a tomar as decisões.

Jarina era uma santista bastante autêntica. Tinha cerca de 1,65m, cabelos compridos e lisos até o ombro, olhos castanhos claros, um nariz um pouco comprido e afilado na ponta, boca e dentes pequenos de alguém que não sorria muito. Tinha uma personalidade forte como braços bem definidos por ser praticante de surf. Era prática e corajosa. Falava muitas gírias misturadas com palavrões e desde que a conheci queria sempre esclarecer os fatos, com perguntas que me tiravam da zona de conforto e me faziam treinar as comunicações difíceis, na área da saúde.

Aos 31 anos, foi para os Estados Unidos tentar uma vida melhor, receber em dólar e ter mais possibilidades de recursos financeiros. Foi com um visto provisório de turista e permaneceu irregularmente trabalhando em bares, lanchonetes e outros serviços gerais.

Após alguns meses da mudança teve uma dor abdominal intensa e deu entrada em um hospital privado num quadro emergencial que chamamos tecnicamente de abdome agudo obstrutivo. Algo obstruíra a passagem das fezes e precisou se submeter a uma cirurgia de urgência. Nela os cirurgiões viram que ela tinha um câncer em seu intestino, já com algumas metástases hepáticas.

Pelo seu relato, tudo foi muito rápido e era muito grave para qualquer conversa sobre o que fazer na sua admissão hospitalar. As decisões médicas foram tomadas e após sua cirurgia ela foi comunicada de uma vez sobre o câncer, sobre a metástase e sobre uma conta de centenas de milhares de dólares que ela devia pela cirurgia, pelo atendimento na Unidade de Terapia Intensiva e pela sua internação.

Sendo uma imigrante ilegal sem operadora de saúde teve que decretar incapacidade de cumprir com a dívida e foi extraditada ao Brasil. Ela voltou para sua cidade natal e eu comecei seu acompanhamento. Desde nossa primeira interação, ela relatava saber que, independentemente do que eu fizesse, teria no máximo cinco anos de vida, pois foi isso que lhe foi dito, no momento da notícia.

Durante seus quase quatro anos de acompanhamento comigo, possibilitamos diversas modalidades de tratamento para ela que, ciente da sua impermanência, usufruiu deles sendo protagonista de sua história e escolhas.

O foco de sua vida não era o tratamento e sim suas experiências intensas, apesar das limitações que a enfermidade e o tratamento traziam. Permitiu-se também viver as emoções à flor da pele, sem vitimização ou heroísmo, sempre exteriorizando seus valores e sentimentos.

Na terminalidade de sua doença estávamos bem próximas. Na última vez em que ela foi receber a quimioterapia, estava já com grandes limitações físicas e dores crônicas, e lembro-me que foi a primeira vez que a vi chorar de tristeza. Sentada na poltrona, começou falando que sabia que a doença estava piorando, pois conhecia o próprio corpo.

Depois, me disse que não queria morrer porque gostava muito de viver, que tinha medo do desconhecido e que, por ser nova, entendia que tinha muitas experiências para desfrutar.

Um pouco depois dessa conversa, ela foi internada num quadro de falência hepática, com indicadores clínicos e laboratoriais que apontavam que a morte estava próxima.

Nos seus últimos dias de vida, sonhava com a natureza, com um lago calmo que a atraía por emanar amor, tendo muito desejo de adentrar suas águas. Mas tinha medo, porque entendia que se entrasse poderia não mais sair.

Na última vez que a vi, no leito do hospital, ela me pediu ajuda para tomar a decisão. Me contou sobre o lago e perguntou se devia mergulhar ou não. Naquele momento, percebi que meu apoio seria importante para que ela pudesse partir em paz. E eu respondi algo como: “se seu coração mandar, Jari, acho que você deveria ir”.

Seu mergulho aconteceu nessa mesma noite.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista