Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Somos feitos de histórias e isso aprendi muito cedo com minha família. Meu pai faleceu quando eu ainda tinha três anos, mas sei muito de sua vida narrada, em especial, pela minha vó Linda. Aliás, sei várias histórias da vida da minha vó porque ela sempre valorizou muito a narrativa de sua trajetória. Como uma colcha de retalhos, ela passou a vida contando suas experiências, suas dores e amores.

No ano em que ela adoeceu, 2015, eu fiquei pensando que, com o seu falecimento, perderia muito da minha ancestralidade, porque não teria acesso a um grande acervo de histórias orais. Passei a gravar algumas das nossas conversas, as guardo com carinho e, às vezes, ouço para matar a saudade de sua voz, tentando me aconchegar na colcha de suas histórias.

Minha profissão também me permite ser uma escutadeira em tempo integral. Diariamente, esbarro com as mais diversas histórias de vida e de morte. Meu trabalho é escutar e atender às demandas da vida. As consultas médicas tendem a ser direcionadas para as doenças, costumamos querer saber das pessoas somente suas queixas, seus sintomas e dores físicas.

Mas acho que não podemos nos esquecer de que é na narrativa das histórias que estão as dores e os medos. Atender queixas e medicar com comprimidos não promove a saúde de ninguém, isso só reproduz impotências.

As narrativas sobre a própria vida dizem muito sobre nós, sobre o mundo que enxergamos e sobre os nossos antepassados. Adoecemos pelo desequilíbrio de fatores extrínsecos e intrínsecos.  Já é bem descrito o Modelo de Determinação Social de Doença que considera um sinergismo entre as condições de vida e o meio em que se vive, com influência de fatores políticos, culturais, ambientais e de agentes patogênicos.

Segundo a Organização Mundial de Saúde “um menino nascido em 2012, em um país de alta renda, pode esperar viver até os 76 anos de idade, 16 anos a mais do que um menino nascido em um país de baixa renda”.

Quem foram os meninos e meninas que estão hoje comigo tratando de um câncer na vida adulta? Quais oportunidades eles tiveram na vida? Que tipo de fatores ambientais eles se expuseram? Tudo isso está nas entrelinhas de sua história.

A cultura oral também está sempre acessível a quem se dispõe a ouvir. Uma das minhas histórias preferidas, daquelas que guardo com grande carinho no meu coração, é a história da dona Luzia Josefa.

Luzia era uma alagoana com cerca de sessenta anos. Logo em sua primeira consulta, notei uma discrepância em seu nome de registro, Josefa, e o nome que se apresentava. Entendendo que preferia ser chamada pelo apelido, nunca mais a chamei pelo nome da identidade e seguimos nossa travessia, unidas para o tratamento de um câncer de estômago já avançado ao diagnóstico.

Sabia que ela era uma emigrante nordestina que veio para a Baixada Santista havia uns 15 anos. Tinha seis filhos e era viúva. Morava com a filha Dil, que sempre a acompanhava em suas consultas. Um dia veio uma outra filha a acompanhando, que se apresentou como Lúcia.

Ao final desta consulta, Lúcia me pede um atestado de acompanhante e me entrega seu RG com o nome de Josefa. Intrigada, fiz o atestado sem maiores contestações.

Possivelmente era um dia em que qualquer curiosidade estava sendo aterrada na luta contra o relógio que acelerado demais nos faz sempre estarmos atrasados. Passadas algumas consultas, ela vem acompanhada de uma terceira filha, Andrea, cujo nome de registro também era Josefa. Nesta ocasião, não tinha como perder a oportunidade de entender o porquê desta família ter três mulheres Josefas em registros oficiais, cujos nomes preferidos eram distintos.

E aí vem a representação cultural popular tão importante, no lugar onde a Luzia Josefa nasceu. Quem nasce laçado, ou seja, com o cordão umbilical em volta do pescoço, deve-se chamar Josefa se menina e José se menino, senão algo de ruim pode acontecer com aquela vida, algum acidente ou uma morte precoce. O nome é como um escudo protetor contra algum possível mau agouro, como um manto sagrado que protege das intempéries da vida.

Assim como a palavra paliativo que vem de pallium, manto cobertor que protege as pessoas do sofrimento das doenças, o nome Josefa é a tradição popular oferecendo um acalento às mazelas da vida. Como se pudéssemos proteger de forma mística e holística os filhos da terra.

Depois disso, toda Josefa que cruzo, me aproximo da dona Luzia. E já cruzei com algumas histórias parecidas. Descobri também que na Amazônia, a mesma tradição é feita só que com o nome de proteção de Antônia e Antônio.

A cada consulta, cada pessoa que atendo conta um pedaço da sua vida e de sua biografia, e nosso papel é ir reunindo esses retalhos. Podemos aprender muito nesse processo sobre a vida de quem está na nossa frente e, porque não, sobre nossa própria vida, sobre nossa própria cultura.

Um provérbio africano diz: “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. Ligo meu computador, coloco a voz da minha avó narrando o nascimento do meu tio mais novo, seu quinto filho que havia sido recriminado pelo médico, e afago meu coração. Eu sei de onde eu vim…

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista