Comunidade da Mangueira, no Rio de Janeiro - Foto: Newton Rodrigues

Capital social é resultado de um conjunto de recursos existentes em determinado território, que são ativados nas relações entre seus habitantes e destes com integrantes do poder público. Refere-se, principalmente, à cooperação, confiança e reciprocidade que são historicamente construídas e têm um papel decisivo nos processos de melhoria da qualidade de vida do local. Não se trata, portanto, de capital financeiro. Seguem algumas definições desse fenômeno social.

Robert Putnam, no livro “Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna”, faz referência a capital social como “as características de organização social tais como as redes, as regras e ao mesmo tempo a ação coletiva fundamentadas na confiança, que facilitam a coordenação e a cooperação para o bem de todos, ou seja, para aumentar a eficiência da sociedade. Pelo fato de viabilizar ações colaborativas, esse fenômeno social tem um peso fundamental para a obtenção de resultados positivos para toda a comunidade”.

Maria Celina D’Araújo, em seu livro “Capital Social”, ratifica Putnam com a seguinte afirmação: “Entende-se que o capital social é formado pela presença de três fatores em interação: confiança, normas definidas coletivamente e cadeias de reciprocidade que formam um sistema de participação cívica”.

Jorge Luiz Amaral de Moraes, em “Capital social e desenvolvimento regional”, sugere que o capital social é constituído por três dimensões: 1) pelas sinergias emergentes da confiança e reciprocidade entre integrantes de uma comunidade, que representa o capital social comunitário; 2) pela pertinência e coerência das ações do poder público para viabilizar os projetos de melhoria da qualidade de vida, denominado de capital social institucional; 3) pelas relações estabelecidas entre membros de determinado lugar com pessoas de diferentes regiões por meio da troca de experiências, sendo o capital social extracomunitário.

Considerando essas três dimensões, em comunidades com elevado capital social, há solidariedade em forma de reciprocidade entre os moradores. Além disso, as políticas públicas são elaboradas com participação, tornando-se pertinentes, ou seja, para efetivamente atenderem às necessidades da população. Nestes casos, a operacionalização, avaliação e correção de rumos de políticas comumente ocorrem com base em parcerias entre o poder público e comunidade, o que aumenta consideravelmente as possibilidades de gerarem impactos positivos.

Todo e qualquer governo sério, seja municipal, estadual ou federal, comprometido em melhorar as condições de vida das populações, age em interação com os integrantes organizados das comunidades aproveitando o capital social existente. Assim, pode apoiar as dinâmicas socioeconômicas promovidas pelos atores sociais locais e a emergência de inovações técnicas e organizacionais construídas coletivamente com base na confiança, cooperação e reciprocidade. Dessa forma, aumenta-se a eficácia das ações governamentais e ainda mais o capital social.

No entanto, ao contrário dessa obviedade, o governo Bolsonaro age para destruir o capital social dos territórios com a implementação de um conjunto de ações e difusão de comportamentos fundamentados no ódio, desprezo pelos trabalhadores e individualismo. Pode-se citar o aprofundamento da desregulamentação das leis trabalhistas e estímulo para que as pessoas sejam empresárias de si mesmo. Há, ainda, o incentivo e facilitação do porte de armas de fogo. Como consequência, a confiança existente nas comunidades é substituída pela desconfiança e a cooperação pela possibilidade de eliminação do outro a tiros.

É notória a parceria que a família do presidente estabeleceu com milicianos que submetem populações inteiras à exploração em vários territórios, extraindo seus recursos, principalmente do Rio de Janeiro. Como exemplo dessa proximidade, pode-se citar o fato de que Flávio Bolsonaro, o seu filho mais velho, homenageou o ex-capitão Adriano Nóbrega com a Medalha Tiradentes, mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio. A Folha de S.Paulo, de 15/02/2020, publicou matéria intitulada: “Bolsonaro diz que miliciano morto era um herói quando foi homenageado por Flávio”. Em 2005, o próprio presidente, então deputado federal, elogiou Adriano. Informação que consta na mesma matéria: “Adriano atuava em diferentes atividades ilegais: milícia, jogo do bicho, máquinas caça-níqueis e homicídios profissionais”.

Além da inviabilização da ativação e da criação de capital social nas comunidades, a política econômica do governo Bolsonaro é desastrosa. Provocou aumento do desemprego, volta do Brasil ao Mapa da Fome, inflação elevada, pobreza extrema e carestia. Por mais que as famílias empobrecidas se solidarizem no cotidiano em seus locais de moradia para sobreviverem e, com base na confiança e reciprocidade, aumentem o capital social comunitário, há um limite de resiliência. As políticas públicas do governo federal são implementadas para dificultar a vida dessas famílias, favorecendo a ruptura dos vínculos sociais, as levando ao desespero, à situação de rua. Jovens em estado de vulnerabilidade ficam expostos à cooptação pelo crime organizado, que também destrói o capital social. Sobre este tema ver aqui.

Sob o governo Bolsonaro, a barbárie ataca a civilização comandada por setores das elites obscurantistas que se apoderaram do Estado e o promoveram a presidente, a executor de políticas que causam concentração de renda, aumento das desigualdades e a banalização das injustiças sociais.

O Brasil precisa urgentemente de um outro governo. Há necessidade de promoção de ações para eliminar a insegurança alimentar, que possibilite a geração de trabalho e renda com políticas públicas de apoio à economia solidária, que tem como princípios a autogestão, a reciprocidade e a democracia. Trata-se, portanto, de apoiar projetos que transformem a solidariedade existente nas comunidades em uma organização econômica, para que as pessoas se associem e resolvam os seus problemas com a valorização dos seus talentos.

Para viabilizar a economia solidária é necessário que haja capital social acumulado. No entanto, este capital crescerá ainda mais por meio das práticas e ações concernentes à própria economia solidária, com base na horizontalidade das relações, no exercício da democracia. Quanto mais confiança, colaboração e reciprocidade são empenhadas entre as pessoas, mais confiança, colaboração e reciprocidade são geradas em um processo de tríplice movimento: dar – receber – retribuir. Assim, quanto mais se gasta, mais cresce o capital social.

A cooperação, a confiança e a reciprocidade existentes nas três dimensões do capital social – comunitário, institucional e extracomunitário – promovem soluções por meio da economia solidária para os trabalhadores que foram descartados do mercado de trabalho. Além disso, proporciona que as pessoas desenvolvam competências que não tinham em processo de aprendizagem coletiva pela autogestão. Todos têm que participar da gestão do empreendimento, pois não há patrão. A definição de procedimentos e posterior execução é de responsabilidade de cada um dos integrantes da iniciativa econômica coletiva.

Há militantes do movimento de economia solidária que defendem ardorosamente a sua construção com a absoluta ausência de políticas públicas, focada apenas na organização comunitária, o que dispensaria a criação de capital social institucional. Assim, não se disputariam os recursos públicos, que certamente seriam destinados para financiar o agronegócio e as grandes empresas, assim como para irrigar o capital improdutivo, exatamente como faz o governo Bolsonaro. Essa posição converge com aquela dos neoliberais que defendem o Estado mínimo, pois repele a ideia de que a sociedade civil não se sustenta fora do campo do Estado. Esse fato acarreta problemas, principalmente, para os empreendimentos econômicos solidários que dependem de financiamento e assessoramento técnico e organizacional do poder público.

O governo Bolsonaro, de forma planejada, destruiu políticas públicas e instituições; lançou à própria sorte os trabalhadores, promoveu o aumento da pobreza e da segregação, fomentou o ódio. O capital social das comunidades e, consequentemente, do Brasil é destruído. Dificilmente pode haver uma reação popular que não seja por meio da eleição de um governo que tenha um programa democrático, que implemente políticas públicas que promovam a melhoria da qualidade de vida da população e apoio à economia solidária. Essa é a base para reiniciar o processo de criação de capital social e construir uma sociedade mais justa.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.