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Cresci rodeada pela minha família materna e sempre compartilhei espaços coletivamente. Morei com meus avós dos três aos dez anos dividindo o quarto com minha mãe e irmão. Depois do casamento da minha mãe nos mudamos, vieram meus irmãos caçulas e até meus catorze dormi na companhia deles. No momento auge em que nossa família de seis pessoas povoou o imóvel de dois quartos, dormíamos os quatro irmãos juntos: Felipe na parte de cima do beliche, eu na parte de baixo, Gui no chão e João no berço.

Mesmo quando nos mudamos para um apartamento maior e eu consegui ter o meu quarto, minha casa estava sempre cheia. A Isinha sempre esteve trabalhando conosco e levava muitas vezes a filha Jajá para brincar com os meninos. Lá também eram feitos os ensaios do nosso grupo vocal “Faz de Canto” às sextas de noite, depois do ensaio sempre comíamos algo e seguíamos conversando madrugada adentro.

Os encontros são fundamentais para as relações de afeto. É na troca com outras pessoas que nos acolhemos, que crescemos, que vivemos. É no isolamento que aparecem os medos, inseguranças e os monstros. Não é de surpreender o impacto dentro de todos nós dessa pandemia. Há cinco meses a distância tomou conta de nós. Eu, por exemplo, não almoço mais na casa da minha mãe aos domingos, não vejo meus sobrinhos, não janto com amigos, não sento num boteco para tomar uma cerveja e conversar sobre a vida.

Há cerca de três semanas marcamos um jantar na minha mãe, eu e meus três irmãos. A iniciativa do encontro foi tímida, alguém colocou no nosso grupo de tomar um lanche no sábado à noite e logo estávamos animados combinando quem levaria a cerveja, o vinho e o queijo. Nesta noite, estava com meu coração ansioso para ver meus três sobrinhos, para conversar com minha cunhada, para ver o sorriso da minha mãe de ver os quatro filhos reunidos. Cheguei cedo e assim como ficamos num primeiro encontro amoroso, meu coração acelerou e estava cheia de expectativas.

E a noite foi um pequeno grande momento em nossas vidas. Nos divertimos muito, colocamos as conversas em dia, assistimos vídeos juntos, demos risada. Daquele jeito que sempre ocorria nos almoços de domingo, um falatório alto, com televisão, som, música, tudo junto e misturado. Sai de lá em paz, feliz por estar perto dos meus amores. Reestabelecendo a energia para seguir em frente em um momento tão difícil. Foi um doce reencontro.

Quando fui embora meu coração apertou, não saberia quando teríamos novamente um momento como esse. Assim como os encontros me fortalecem as despedidas me despedaçam. Se despedir de alguém para mim ainda é um grande desafio, em especial quando não se sabe quando será a alegria do reencontro. Um sentimento de tristeza inunda minha alma, coração aperta, lágrimas saem facilmente, algo que se assemelha a uma ruptura.

Dizer adeus pode desencadear sentimento de amor. Há disponível no YouTube um TED do médico socorrista Matthew O’Reily que narra sua rotina de trabalho com fatalidades agudas. Em muitos casos ele atendeu pacientes que tinham minutos de vida e que não havia nada que ele pudesse fazer por eles e ele dita o seu dilema: dizer a essas pessoas que elas estão prestes a enfrentar a morte ou mentir para confortá-las. Por muitas vezes ele mentiu, sentindo medo que se contasse a verdade as pessoas morreriam com horror ou medo. Isso tudo mudou depois de um incidente quando atendeu um condutor de moto que sofreu ferimentos graves e o questionou se ia morrer. Naquele momento o médico resolveu falar a verdade, confirmando que a morte seria inevitável e, diferente do imaginado, o homem apresentou uma paz interior.  Repetida essa experiência em diversas ocasiões, percebeu sempre a transmissão de mensagens de amor e tristeza por partir.

Adoecer é lidar com o descontrole de vida e aceitar os cursos naturais, mesmo os tratamentos exitosos nos tiram da zona de conforto e perturbam nossa rotina. Se for uma doença aguda que logo vai embora, como uma apendicite ou uma perna quebrada, possivelmente tudo volta ao habitual. Mas se for uma doença crônica é necessária maior flexibilidade para entender os limites da ciência e muita maturidade para um processo longo de despedidas. E é triste, a vida é feita de tantas coisas boas, temos medo de partir.

É abrir mão de trabalhar com a mesma produtividade tendo impactos emocionais e financeiros. É ter novas prioridades de vida. É ter uma rotina permeada por procedimentos, exames, consultas e, às vezes, internações. É perder a independência física necessitando de auxílio para atividades básicas de rotina e até na higiene pessoal.

Em processos de adoecimento e morte de uma pessoa querida, a dor da perda é irreparável, e não há palavras ou verbos que concluam a potência de um vazio.  O luto é reação natural diante de uma perda e é uma experiência universal. Essas perdas podem ser concretas ou simbólicas que geram uma necessidade de readaptação que com estresse e sofrimento intensos.

Se não há frases prontas de conforto para esses momentos, há elementos favoráveis na elaboração do luto como os rituais pós morte e resgate da rede de apoio. De novo o encontro pode ser um recurso importante na ressignificação da perda. Sem o afeto a o que seria de nossas vidas?