Foto: Cesar Morgado/Seicom/PMSV

“O seu amor
Ame-o e deixe-o livre para amar
Livre para amar
Livre para amar”
(Caetano Veloso – Gilberto Gil)

Outro dia caminhava pela orla da praia de Santos e vi um casal de adolescentes se beijando. Eles estavam sentados em um dos bancos do jardim, na direção do mar, e pareciam verdadeiramente alegres. Minha primeira reação foi invejá-los, também pelo beijo, mas sobretudo por estarem juntos, felizes, sem preocupações. Compadecido de mim, sentei-me para tomar água de coco e mergulhei em minhas memórias, o que fez com que a inveja cedesse lugar a um sentimento de gratidão pelos meus tempos de juventude.

Fui um adolescente extremamente passional, um irremediável apaixonado, diria dotado de um coração desencapado. Leitor juvenil dos também juvenis poetas românticos, queria uma musa para chamar de minha, sonhava em ser arrebatado por um amor pelo qual fosse justo matar ou morrer. Cheguei a escrever sonetos na forma dos árcades, com referências a mitos indígenas, mas tinha um bom amigo que me alertava para o absurdo dessa escolha. Esse amigo, hoje, é doutor em literatura.

Em minha busca vã, caçava musas em garotas que, corretamente, só queriam se divertir, dar uns beijos na boca, explorar sua sexualidade. Não foram poucas as vezes que me dei mal por isso. Uma ocasião no verão, viajei com amigos do prédio em que morava para a Praia Grande. Eu e Alencar, talvez o mais hábil sedutor de minha geração, com suas incontáveis conquistas no currículo, caminhávamos pelo calçadão do Boqueirão quando avistamos duas bonitas meninas. Cau, como o chamávamos, me convocou a uma arrojada abordagem, que envolveria apenas cruzar o caminho delas e iniciar uma conversa.

– Eu vou na mais baixa e você na mais alta, ok?

Nem tive tempo de expressar meu desconforto. Rapidamente, como um experiente corsário, aproximou sua embarcação do alvo e lançou suas cordas. A garota mais baixa começou a sorrir e os dois iniciaram um papo que parecia divertido. Fui, então, me aproximando, e recebi uma piscadela de incentivo do discípulo de Don Juan.

Com o coração na goela, tentei puxar papo com a garota que mesmo sendo mais alta que a amiga era mais baixa que eu. Tinha certeza de que minha inibição a atormentava, de que ela era capaz de captar no ar o meu pavor, que obviamente não daria bola para mim.

– Oi, tudo bem?

– Sim e você?

– Sim, sim, queria saber se você gosta de literatura, de Álvares de Azevedo, um poeta romântico.

Não houve muito tempo para mais nada. Minhas lembranças só registram o esporro que tomei do Cau quando ele viu as duas caminhando apressadas, a mais alta puxando a mais baixa.

– O que você disse a ela?

– Perguntei se gostava de poesia, de Álvares de Azevedo…

– Nunca mais faça isso, você vai queimar o meu filme.

Depois do ralho, sentamos num botequim e ficamos bebendo cerveja. Obviamente, passei dias sendo zoado pela minha abordagem inusual que tanto medo causara nas meninas bonitas. Naquelas férias, não beijei ninguém.

Ao relatar essa história, nem precisaria reafirmar minha inabilidade na arte da paquera, mas tenho para mim que não era só uma questão de aptidão e sim de convicção. Eu achava ridículo quem ia ao carnaval e saía contando com quantas meninas ou meninos havia ficado. Jamais achei um beijo algo descartável. Talvez essa recusa alimente uma certa timidez que carrego comigo e que só se dissolve quando acesso algum lugar de intimidade.

Essa timidez, que não me desagrada, descobri logo no início da minha vida amorosa, quando tive de ser conduzido por um amigo até meu primeiro beijo. Eu tinha pouco mais de 13 anos e gostava da garota. Ela morava no meu prédio, mas era filha do meu temido e amado técnico de futebol. Para mim, nada era mais importante que jogar bola, mas, como a vida é risco, de repente lá estava eu experimentando outra língua a tocar a minha, justamente a da filha do treinador, um homem bastante machista e controlador.

Entre minhas paixões de formação, uma das que mais me marcou foi a que vivi com uma menina que conheci no acantonamento para o qual ia anualmente, em Itapecerica da Serra. Bárbara era irmã de dois amigos, gêmeos, e morava em Itatiba, cidade vizinha de Jundiaí. Nosso primeiro beijo ocorreu durante o acantonamento, burlando uma regra que impedia esse tipo de liberdade entre os jovens. Para visitá-la, quando já não me bastavam as cartas nas quais as folhas de papel almaço eram preenchidas com “eu te amo”, precisei fugir de casa. Fuga essa que rendeu uma inesquecível tarde de amassos e um castigo de meses.

Quando conheci Lia, eu tinha apenas 18 anos. Era ainda o mesmo adolescente passional, só um pouquinho mais vivido. Estava encerrando um atribulado namoro de ano e pouco com uma vizinha que era o próprio arquétipo da “garota ao lado” (girl next door). Dizíamos que nos amávamos, tínhamos verdadeira cumplicidade, mas sofríamos marcação cerrada de seu pai que não fazia questão nenhuma de que nos relacionássemos. Rompemos quando me mudei para São Paulo e nossas vidas se bifurcaram. Lia, por sua vez, minha colega de classe na faculdade de jornalismo, tinha um namorado, que também se chamava Rodrigo e fazia parte de seu grupo de amigos de adolescência.

Nossos primeiros meses juntos foram marcados por idas e vindas, encontros e desencontros, num triângulo em que nem todos tinham todas as informações. No segundo semestre de 1999, depois de uma viagem que fizemos a Paraty, tornei-me seu namorado “oficial”. Por conta disso, fui convidado a passar o natal em sua casa, o que implicaria conhecer toda a sua família: tios, primos, avós, amigos. Na véspera da viagem, porém, ela me telefonou para contar-me que tivera uma recaída em um reencontro com o ex. Desmoronei, mas lhe disse que merecíamos uma conversa olho no olho, sem a qual nada poderia ser decidido.

Marcamos em São Paulo, território neutro.

Fui encontrá-la machucado. Ela também estava. Ao me ver, chorou muito e falou em arrependimento. Eu também chorei. Naquele momento, eu, canceriano romântico, que tão pouco sabia da vida, me vi diante de um fato concreto que impunha uma decisão importantíssima: escolher entre passar por cima de minhas convicções juvenis e construir uma relação com a mulher que estava me ensinando que o amor não era somente um sopro intenso e momentâneo ou fincar pé em meus medos e me separar de alguém por quem nutria um amor muito maior que todos os anteriores? A festa de natal em sua casa foi uma delícia.

Não digo que tenha sido fácil escolher permanecer. Muito remoí aquele episódio e o utilizei como uma espécie de salvo-conduto, algo de que não me orgulho. Mas rapidamente percebi que aprendera algo positivo, e passei a elaborar uma tese sobre como a “traição” é libertadora. Eu sabia, do fundo do meu coração, que o impulso que a levara a passar uma noite com o ex-namorado, com o qual mantinha uma intimidade de anos, não influenciava no centro de seu sentimento por mim. E era com esse centro que eu me conectava.

Ao fim e ao cabo, o benefício maior que esse episódio nos causou foi dar início ao contínuo processo de dissolução da noção de posse associada a nosso amor. O que ajudou-nos a enfrentar outros acontecimentos ao longo de nossa longa e feliz travessia como casal. Afinal, foram muitas as vezes que discutimos e rediscutimos a relação, que nos propusemos a diferentes testes, que nos vimos diante de desafios e dilemas, que chegamos até a nos apaixonar por outras pessoas. Mas sempre escolhemos continuar juntos.

Uns três anos depois daquele episódio envolvendo seu ex-namorado, fiz minha primeira viagem internacional. Fui para a Cuba, acompanhado de quatro amigos, e lá conheci uma garota especial com quem passei uma noite inesquecível. Foi algo que desejei, bom de realizar, mas que teve como rebatimento um desconhecido sentimento de culpa.

Ao regressar, relatei tudo a ela, que não gostou nada nada de saber. Ainda assim, superamos o episódio novamente com sinceridade e companheirismo.

Nesses anos iniciais de namoro, a principal provação ocorreu quando ela resolveu passar um período na Europa, sem data de volta, e optamos por um arranjo intermediário. O acordo foi: à distância, não havia porque não vivenciarmos nossos desejos, mas como nos amávamos não fazia sentido também terminarmos. Jamais abandonei meu romantismo e por isso acreditei que seria importante descobrir se nosso amor sobreviveria ao Atlântico como obstáculo. Durante sua viagem, nos correspondíamos e falávamos com frequência.

Essa temporada coincidiu com o fim da faculdade e o início de meu trabalho na campanha que levaria Lula à sua primeira eleição. Aproveitei-a para explorar-me, descobrir coisas, errar. Me envolvi com outras mulheres, mas também sofri muito de saudade. Fiquei absolutamente convicto de que a queria de volta, e cheguei mesmo a pensar em comprar uma passagem para Madri, o que não fiz pelo medo do desconhecido.

Meses depois ela voltou, com uma novidade: um rapaz espanhol com o qual se envolvera e que diante de sua escolha de regressar ao Brasil optou por vir atrás dela. Por um mês, rompemos. Meus diários registram essa dor. Cheguei mesmo a acreditar que seria o fim de nossa história. Até que um dia ela apareceu na porta de meu apartamento da Bela Vista e disse que me amava. Passamos horas trancados no quarto. Nos amamos e conversamos. Estabeleci uma única condição para reatarmos: que ela não voltasse a ver o espanhol.

Uns quatro anos atrás, numa noite em que falávamos sobre a busca pelo amor livre, sobre desejos clandestinos que cultivávamos, Lia me confidenciou que amou nós dois simultaneamente, mas que aquilo parecia impossível de conjugar. Especulamos divertidamente sobre esse sentimento, inspirados por Dona Flor e seus dois maridos, e não nos pareceu algo assim tão absurdo. Concordávamos que a monogamia é uma prisão hipócrita de uma sociedade falida e recalcada. Mais importante que a fidelidade patriarcal, que precisa ser destruída, são os laços, a confiança, a parceria, a dedicação e a verdadeira entrega entre os amantes.

Sermos livres para amar livremente, com a complexidade que isso implica, foi algo a que nos dedicamos em nossos vinte anos juntos. Os aprendizados dessa escolha carrego gravados em minha pele.

O menino adolescente, de coração desencapado, tornou-se um homem que teve o privilégio de viver ao lado de uma mulher que sempre o inspirou. Essa mulher foi também sua musa, e a ela eu dediquei versos e canções. Ela também foi sua grande amiga e parceira, e quero acreditar que eu a ajudei a ser melhor tanto quando ela me ajudou.

Essa mulher, que se chamava Lia, infelizmente morreu muito jovem, mas vive em mim e me inspira a seguir amando.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista