Foto: Nasa, ESA e a Equipe LEGUS

Eu estava no panelaço da turma de direito da Universidade Católica de Santos. Não recordo o nome daquela ruazinha na lateral do prédio da faculdade que fica na Conselheiro Nébias. Só lembro de estar em casa, triste, e dos amigos insistirem para que eu fosse até lá com eles numa tentativa de diminuir a agonia que me acometia havia quatro dias.

Era 27 de outubro de 2012.

Das condições do tempo eu também não lembro. Tudo para mim parecia estático, não fazia sol nem chovia, e as cores oscilavam entre um azul tímido e um cinza triste, quase tão triste como eu me sentia.

No meio da música, dos gritos, dos sorrisos e copos de cerveja, meu celular tocou.

– Kamila, a tia Justina chegou. – disse minha irmã do outro lado da linha. Eles estão indo ao hospital visitar a mãe. – e finalizou.

Eu amava a tia Justina porque ela se parecia muito com a minha mãe, não à toa elas eram irmãs. Essa ligação, embora rápida, reviveu em mim todas as memórias dos natais em família, das férias em Diadema, dos primos que cresceram comigo. Agora, pensava, estamos todos novamente reunidos, mas não é natal e não estamos ao redor da mesa posta e repleta de delícias preparadas com muito amor pelas matriarcas da minha família.

– Okay, me mande notícias! – e desliguei o telefone numa mistura de desespero e suspensão.

Continuei por lá, observando a alegria das pessoas comemorando o fim próximo de mais um ano letivo. Em alguns momentos eu conseguia esquecer o que acontecia em paralelo na minha vida. Em outros, sentia ódio por todos estarem alheios à minha dor.

Depois de aproximadamente duas horas, eu imagino, meu telefone tocou novamente, mas desta vez nenhuma voz falou comigo. Do outro lado da linha, apenas silêncio.

– Alô. Alô? – repeti. E então comecei a escutar soluços e lágrimas. – Alô? Fala comigo.

– A mãe, Kamila. A mãe morreu. – disse a voz embargada da minha irmã.

Tudo nublou ao meu redor, de repente meus ouvidos já não escutavam a música, tudo parecia lento e minha alma abandonou o meu corpo por alguns segundos, observando os sorrisos largos e cheios de vida das pessoas em volta, enquanto aquelas palavras me perfuravam sem piedade.

– A mãe morreu, Kamila. Sua mãe morreu.

O celular pendeu da minha mão e eu desabei num desmaio semiconsciente, de olhos abertos. Rapidamente senti braços me ampararem e me levaram em direção ao carro, e em seguida ao hospital Ana Costa. Eu não entendia direito o que estava acontecendo, estava apenas ali, sentada, sem saber ao certo o que sentia, pensava ou desejava. Não sabia nem ao certo se acreditava no que ouvira minutos antes ao telefone.

Durante o pouco tempo que durou o percurso, alguma parte de mim se apegava à possibilidade surreal de que tudo seria uma grande piada, daquelas que parecem interessantes no começo, mas não têm a menor graça no final.

Mas ao chegar ao hospital vi meu pai, inconsolável, meus irmãos, amigos, todos desolados, todos incrédulos com aquela morte tão prematura, tão dolorosa e inesperada. Entre os abraços e as lágrimas, eu me senti novamente como a caçula indefesa, como a menor de cinco irmãos, como a Milinha da mamãe.

Meu estômago afundou.

Minha mãe, a mulher que me nutriu de seu seio até meus quase cinco anos. A mulher nordestina, de origem pobre, que foi para São Paulo aos 16 anos trabalhar como empregada doméstica em busca de uma vida mais humana, de oportunidades mais justas, a mulher que perdeu a mãe no parto, falava alto e não media esforços para ajudar alguém. A mulher que me mostrou os primeiros vislumbres de liberdade deixando claras suas correntes e que, através disso, me permitiu, de fato, buscar a mesma liberdade que lhe foi negada.

Essa mulher.

Minha mãe.

Morta.

Depois, não sei ao certo dos meus passos. Sei que fui para casa, em algum momento, para tomar um banho, trocar de roupa e me preparar para ver minha mãe ser colocada numa gaveta, dentro de um caixão de madeira. Consigo sentir o cheiro dos cigarros que fumei desesperadamente, como se a fumaça de alguma forma pudesse circular pelo meu corpo e impedir que eu visse meus pensamentos com clareza.

Caixão lacrado, outro soco na boca do estômago.

– Quem está lá dentro? – pensava.

E quem sabe de repente tudo não passasse mesmo de uma grande piada sem graça.

Mentira.

Era tudo verdade.

– Você é a mais parecida com ela, sabia? – escutei de uma senhora, enquanto circulava de um lado para o outro, e respondi com um sorriso sem dentes.

Daí avistei meu irmão de cabeça baixa, com as mãos sobre o caixão. Em uma delas ele segurava o celular como se quisesse que ela ouvisse algo. Me aproximei devagar e encostei meu braço no dele.

– Lembra que a mãe sempre brincava que era pra gente tocar Zeca Pagodinho no velório dela, quando ela morresse? – disse. Está tocando para ela.

E ficamos ali, absortos por um tempo, dividindo a música que ela tanto amava.

E seguimos assim, entre amigos, conversas, lembranças, até que aconteceu algo que eu nunca vou esquecer.

Quando colocaram, de fato, o caixão na gaveta e selaram sua abertura, um vizinho nosso querido pela minha mãe, conhecido como “Baé”, disse algumas palavras em voz alta que não recordo agora, e em seguida começou a bater palmas para ela. E de repente todos começaram a bater palmas e aquele lugar mórbido, frio, encheu-se de som e de luz, meu coração se aqueceu e acalmou por alguns segundos.

E de repente existia beleza ali, foi bonito aquilo.

Lembro do meu pai dizer: “Será que ela sabia que era tão querida assim?”

E algo me diz que sim, que ela sabia.

Os meus natais nunca mais foram os mesmos, e eu nunca mais fui a mesma.

A morte tem um poder que, geralmente, ignoramos, estúpidos e egoístas em nosso luto. Ela acentua a vida, a viabiliza, nutre a terra, emana energia de volta para o universo.

Hoje, 27 de outubro de 2020, eu só consigo sentir os braços dela me envolvendo, apertado, e olhar para o céu enquanto escuto a voz do Carl Sagan dizendo: “É tudo poeira de estrelas”.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.