Foto: Imagem do pintor Eliseu Visconti/Wikipedia Commons

Dias atrás, assistindo a uma videoaula sobre a Revolução Russa, vibrou dentro de mim uma ânsia por saber mais sobre as mulheres invisibilizadas pelo patriarcado ao longo da história.

Tal curiosidade nasceu no momento em que o curso trouxe à luz uma das figuras centrais da Revolução, Alexandra Kollontai, a primeira mulher na história reconhecida como membro de um governo e que há mais de 110 anos lutava, no sentido mais amplo da palavra, pela existência de políticas públicas que possibilitassem uma real emancipação da mulher. E eu sequer conhecia seu nome, e nem lembro de tê-lo ouvido nas aulas de história, ou visto nos livros didáticos. E, então, eu, que sempre odiei rótulos, me vi diante de um impasse: a necessidade de começar a assumir os que me cabiam.

Feminista, existencialista, escritora. Fosse qual fosse a palavra, sempre tinha alguém ali, com o dedo em riste, dizendo que você só podia ser “tal coisa” já que pensava ou fazia outra “tal coisa”. E, então, ao invés de negar, de dizer que não era isso ou aquilo, comecei a gostar de assumir uma postura diferente: “sim, é assim que chamam as pessoas que pensam como eu? Então, eu sou tal coisa, e daí? Qual o problema?”, e quase que imediatamente a distribuição não solicitada de rótulos cessava.

Fenômeno parecido com aquele que acontece quando alguém faz uma piada de cunho preconceituoso e você, sem esboçar nenhum sorriso, diz educadamente: “Me explica por favor, eu não entendi!”, e coloca o piadista numa posição de total desconforto devido à impossibilidade de ofertar uma explicação plausível que justifique a piada preconceituosa que ele, até então, achava engraçada.

Assumindo os meus rótulos, especialmente o de feminista, empreendi nessa busca profunda por saber sobre as mulheres que lutaram antes de mim. Busquei por referências na internet, li diversas matérias sobre o movimento, fiz cursos online, assisti muitos vídeos, comprei diversos livros e, neste mergulho, acabei esbarrando comigo mesma, com a história das mulheres da minha vida, principalmente da minha mãe.

Sabia que, quanto mais embasada fosse minha argumentação diante de um conflito, menos agressivo seria meu posicionamento, menor seria minha necessidade de gritar para que me entendessem, já que eu mesma cheguei numa compreensão mais densa, mais completa. Estudar o feminismo é estudar sobre a vida de outras mulheres, ler sobre outras pessoas, que existiam de formas diferentes, mas que almejavam um sonho de liberdade comum.

A coisa grande desse processo foi o prazer de descobrir tantas mulheres corajosas, tantas mulheres que assumiram riscos absurdos, sofreram consequências devastadoras e, até mesmo, perderam a vida para que nós desfrutássemos hoje de maior autonomia.

Prazer que eu não sentia há tempos aprendendo algo. Me via a cada dia mais ávida por novas informações, por entender o passado, por conhecer os rostos e nomes daquelas mulheres inacreditáveis. A cada novo nome, a cada novo fato, foto, direito conquistado, grito dado, eu me sentia mais forte, como se todas elas me dessem permissão para seguir lutando por igualdade, pela independência de ir e vir, sem o medo intrínseco que acompanha o “ser mulher” dentro do sistema em que vivemos.

Comecei a pensar que, talvez, todo o esforço empregado ao longo dos séculos para nos manterem afastadas dos espaços públicos e de poder, vem intimamente ligado ao medo de toda uma força ancestral que nos preenche, e nos sustenta.

A história da humanidade é, sobretudo, uma história de luta de classes. Uma luta de um grupo oprimido contra um grupo opressor e privilegiado. E como diz Engels, dentro desta perspectiva, a primeira forma de opressão foi dos homens sobre as mulheres, e nós estamos cansadas, cada dia mais, e a cada nova conquista um novo grito é liberto, e a cada novo direito, nossos olhos tornam-se mais atentos.

Hoje mesmo, em algum lugar, nasce uma nova revolucionária. Mulheres levantam todos os dias de suas camas para encarar transportes públicos lotados e poder sustentar a família, às vezes sozinha, como as quase trinta milhões de mulheres que chefiam famílias no nosso país. Enfrentando, diariamente, o medo de vestir uma pele que a coloca numa posição de objeto. O homem, sujeito de desejo, a mulher, objeto. E seguimos lutando pelo direito de existir, sem que tentem nos convencer que somos de algum modo inferiores, porque não somos.

Foi-se o tempo em que a força física, que geralmente é maior nos homens, era válida como parâmetro de distinção para hierarquizar um grupo. Agora, não precisamos provar através de brutalidade qual lugar nos cabe, não é necessário subjugar o mais fraco para merecer uma posição de poder.

Hoje, com ferramentas, tecnologia e muitas conquistas forjadas sobre o sangue e o suor de muitas mulheres, podemos mostrar que nossas competências e vontades são suficientes para que possamos ocupar os espaços que quisermos, e sermos o que desejarmos.

Que ensinemos nossas meninas, desde cedo, que não se deve temer a ponto de calar, que não se deve aceitar que nos digam onde devemos e merecemos estar. Como disse Frida Kahlo, é preciso ser mulher por muitos anos para desaprender as coisas pelas quais nos ensinaram a pedir desculpas.

Não vamos mais nos desculpar por existir. Queremos apenas que saibam, todos, que também somos capazes, todos, por que somos intrinsecamente iguais.

Às vezes, quando a imaginação flui longe, avisto um lago rodeado por um jardim com grama bem verde, com algumas árvores frondosas fazendo sombras de formatos variados, e observo várias meninas brincando e correndo. Vejo as irmãs Grimké e uma Djamila Ribeiro sorridente, escuto a Malala contando para pegar a Pagu, que se esconde atrás de um arbusto, e do outro lado, Sojourner Truth brincando de oradora em cima de uma pedra. Rosa Luxemburgo e Olympe de Gouges jogam bola, Nísia Floresta e Bertha Lutz pulam corda. Todas elas, e tantas outras, tão determinantes para que eu esteja aqui, colocando minha voz no Folha Santista, foram crianças amadas por alguém, e foram mulheres que aprenderam desde cedo, como eu, que é preciso lutar sempre.

Sempre com amor.

Sempre por liberdade e igualdade.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista