Vista da sala da casa de meu sogro e minha sogra no Sítio Viramorro – Foto: Paulo Côrtes

“And let me be
To go off on my own
Let me be to go home
I feel like going home”
(Yo La Tengo).

Ligo o carro, um HB20 alugado. Não me lembro qual era o carro que eu pilotava quando fiz o trajeto de Santos para São José dos Campos, levando meus filhos para se despedirem da mãe, que tinha decidido passar seus últimos dias de vida no hospital de cuidados paliativos. Creio que também era um HB20, alugado. Este parece mais novo e é branco. O outro talvez fosse preto. Um Chevrolet? Noto que os recursos multimídia parecem melhores e mais avançados. Minha memória daqueles dois meses que precederam a morte de Lia, em que fiquei entre as duas cidades, distantes 200 quilômetros uma da outra, é fugidia. Chego a duvidar de alguns episódios, nem sei se realmente os vivi ou os inventei. Arrumo os retrovisores, puxo o banco para a altura que mais me agrada e tento esconder de minha mãe e de meu filho a ansiedade. Estou suando. Ligo o ar-condicionado. Faz tempo não pego uma estrada e dirigir já não é algo que me dê prazer. Além disso, confesso, tenho receio de transportar aqueles que amo, porque não posso nem quero mais perder ninguém de meu círculo íntimo e os acidentes de carro são recorrentes no Brasil. Em silêncio, sem que ninguém perceba, faço uma oração pedindo proteção. Peço a Lia que ilumine meu caminho de regresso ao Viramorro, o sítio de seus pais, que ela tanto gostava.

Júlia está na aula de piano. Passo em casa, carrego o carro, deixo o pacote de ração dos gatos e uma nova fonte de água para que eles não morram de fome ou de sede nos dias em que estiver fora. Meus pais estão comigo, sempre me auxiliando, ajudando a pôr em ordem roupas e louças para que eu possa viajar em paz. Recolho minha mala e a de minha filha. Francisco carrega sua mochila e um travesseiro. O balanço do carro costuma fazê-lo dormir. Quando tinha menos de um ano, nós morávamos em uma ampla casa em Brasília, num condomínio do Lago Oeste. Como Chico tinha dificuldades para pegar no sono, não raro o colocávamos no carro para um passeio pelas ruas arborizadas das imediações. Não tinha erro. O risco era que acordasse quando o retirávamos da cadeirinha, mas Lia tinha muita habilidade para recolhê-lo entre seus braços e levá-lo, aconchegado, até o berço. Sigo pelas ruas do bairro até a Conselheiro Nébias, onde faço hora. Almoço e tiro dinheiro. Chico me acompanha. Um PF gostoso, com frango empanado e batatas fritas. Júlia liga avisando que sua aula terminou. Peço para que me espere do lado de fora da escola.

 Antes de nossas viagens de família, eu sempre parava no posto de gasolina para abastecer, verificar óleo e água, e aproveitava para comprar batatas chips, água e alguma bebidinha, geralmente mate gelado, para aguentar o trajeto. Eventualmente, um café. Lia costumava pedir um chicletinho ou uma balinha ardida. Tinha o hábito de carregar chicletes ou balas na bolsa, como os que, recentemente, encontrei perdidos em uma mochila dentro de meu armário. Eram seus, e ainda estavam ali. Nem sequer tinham vencido. Júlia me pede para vincular seu celular ao aparelho multimídia do veículo, assumindo a trilha sonora de nossa aventura. Como o carro está abastecido, não paro no posto. Não teremos nem batatas, nem água, nem chá, muito menos balinhas. Mas ao chegar teremos três garrafas de vinho, um rosé da Provença e dois espumantes italianos que comprei na Grand Cru. Júlia viaja no banco da frente, do carona, e eu peço a ela que ponha o cinto direito. Chico já dorme esparramado no banco de trás. Por meses, fiquei sem ver meus sogros, e, consequentemente, meus filhos o avô e a avó. Ainda não conheço meu sobrinho, Caetano, que nasceu, em Brasília, prematuro, cerca de dois meses antes de Lia morrer. Estou apreensivo pelo reencontro. Com saudades de todos, mas não deixo de me preocupar com os riscos de contágio pelo coronavírus. Meu sogro e minha sogra, ainda bem, fizeram um efetivo isolamento durante a pandemia, e têm, como nós, atravessado o luto sozinhos, na maior parte do tempo. Rotina quebrada pelo fato de que meu cunhado, com a esposa e os dois filhos, resolveu ficar com eles durante a quarentena. Dudu, meu outro sobrinho, de cinco anos, é um azougue. Preenche o mundo com sua inteligência de cientista precoce, especialista em buracos negros, tornados e furacões. Estar com os netos com certeza lhes faz bem.

O clima não se decide. Em alguns trechos, chove. Em outros faz sol. Chega a serra, cuja pista está prateada, o asfalto molhado e iluminado pelos raios solares. Nela, sol e chuva. “Casamento de viúva”, diz Juju. Eu penso, mas não digo: de viúvo. Nessa alternância entre trechos ensolarados e chuvosos, fico em dúvida do que fazer com o limpador de para-brisas (que deveria se chamar rodo de carro ou secador de para-brisas, não?). O som do motorzinho e da borracha no vidro seco jamais me incomodou, mas Lia o detestava. Ao esquecer a peça ligada por alguns minutos, em um trecho seco, ouço sua voz na minha orelha, sussurrando: “Rô, desliga o chuque chuque!”. O tom é doce, sua voz era doce. Eu rio, e choro, e rio. Sol, e chuva, e sol, e chuva. Tento esconder minhas lágrimas de Júlia, mas ela percebe minha histeria, e pergunta o que aconteceu. Eu, então, conto a ela que ouvi a voz de sua mãe, a dizer exatamente o que me dizia quando eu esquecia o limpador (ou secador?) de para-brisas ligado em trechos secos. Há quem diga que, com o tempo, a dor da perda se torna uma doce presença. Eu sinto essa doce presença o tempo todo, misturada à dor da saudade, sol e chuva, seco e úmido, quente e frio, tudo ao mesmo tempo, sensações que se alternam, se sobrepõem, por vezes se anulam, por vezes me anulam.

 Juju alterna a seleção musical entre clássicos, cujo gosto compartilhamos, e novidades de sua geração, que quer me apresentar. Adoro que meus filhos sejam crescidos e compartilhem comigo suas descobertas. Lia estava se divertindo muito com esse momento de trocas. Não são poucas as vezes que, tomado pela alegria, logo entristeço-me pensando em tudo que ela não vivenciará. Sinto uma responsabilidade dobrada, de viver essas histórias, por mim, mas também por ela. Cobro-me presença. Quando percebo-me feliz, tento imaginar o que ela diria, seu sorriso de satisfação, seu meneio de cintura, gestos que, ainda bem, nossa filha herdou. Quase no fim da serra, avisto um gigantesco e nítido arco-íris, cuja extremidade parece apontar para a direção que temos de percorrer. Na Bíblia, o arco-íris é o símbolo da conexão entre Deus e os homens. Em suas pontas, dois mundos, este e aquele, ambos desconhecidos, ambos assustadores, a vida e a morte, o princípio e o desfecho, a terra e o céu. Nas histórias infantis, há sempre um pote de ouro nos esperando no fim das sete cores. Mas como precisar onde ele começa ou termina, de que lado? Nunca entendi muito bem. Enquanto dirijo, Júlia tenta fotografar o arco-íris, que forma um arco sobre a Baixada Santista. Lembro-me bem da primeira vez em que, descendo a serra, Lia olhou para as luzes das cidades à beira-mar e disse: olha lá, a nossa casa!

Cruzo a porteira do Viramorro, que está aberta, antes do horário previsto. Ainda nem escureceu. Faço o trajeto de carro que leva à casa nova, construída por meu sogro para ser sua última morada. Uma casa que congrega toda sua destreza e criatividade como arquiteto, com dois módulos, um de lazer e outro de dormitórios, divididos por um pequeno lago, habitado por carpas. A cozinha e a varanda são incríveis, com bancadas, churrasqueira, forno à lenha e ofurô. Fica num platô, com vista para um lago e para o remanescente de mata atlântica onde há uma cachoeira. Buzino para avisar que, enfim, estamos de volta. Seria impossível não nos abraçarmos. Ao cruzar a porta principal, sou tomado por uma sensação de acolhimento. A disposição dos elementos se assemelha muito a do apartamento que eu e Lia bordamos para vivermos em Santos. E alguns móveis, a mesa de oito lugares e a de centro, feitas de material de demolição; o quadro que reúne as rolhas de vinhos e espumantes que tomamos em família; as luminárias; as banquetas do balcão, foram nossos, o que reforça o déjà vu. Um gigantesco lustre de madeira, concebido por meu sogro e executado por meu cunhado, ilumina os ambientes. Penso que o apreço pelo bom gosto foi um entre tantos ganhos que tive ao me tornar parte da família Rangel Cortes. Um bom gosto que em Lia parecia simultaneamente natural e mágico.

 Sento-me no sofá da sala, com o violão, Júlia se aprochega e pede para tocar e cantar, sob o olhar atento de Gabriel, o tio Gabi, e de Eduardo, o primo Dudu. Ela entoa uma das músicas de seu repertório, creio que While My Guitar Gently Weeps, em versão finger style, os acordes e os solos tocados simultaneamente. Canta lindamente, e recebe elogios. Fica feliz. Todos estão abismados com a altura de Chico, que deu um estirão e já está quase do meu tamanho. Sei que ele se sente orgulhoso de ter crescido. Está cada vez mais parecido com os tios e lindo como a mãe. Minha sogra chama-me atenção para o fato de que fazia oito meses que não nos víamos. Eu, que me tornei um matemático da saudade, sempre a contar os dias de meu luto, não havia me dado conta de que aquela era a primeira quinta-feira, dia 7, depois da morte de Lia. Há exatos oito meses, saí de Santos pela manhã, porque minha amada havia anunciado que queria ser levada para o Hospital Premiere. Imaginei que faríamos isso na segunda-feira, depois do domingo de dia das mães, mas ao chegar fui informado por ela que teríamos de partir naquele mesmo dia. Montamos uma operação, eu levei Juju e Chico para Jundiaí; e Lu e Tiago levaram Lia para o hospital, em São Paulo. Sob a lua cheia, nos encontramos, e naquela mesma noite ela partiu. Enquanto estamos sentados tocando, cantando e bebendo, um raio explode ao lado da casa. A luz se apaga, um copo quebra, uma criança grita, a outra chora. Ainda bem, diz minha sogra, “agora temos gerador”. A luz volta, enfraquecida, e rimos da situação. Impossível não se perguntar se o raio não seria de Lia, filha de Iansã, comemorando nosso reencontro.

Minha casa era ela. Meu lar era o nosso. Na manhã do dia seguinte, caminho pelo Viramorro entregue às recordações. Desço o pequeno declive que separa a casa antiga da piscina e vejo nós dois. O ano é 1999 e é minha primeira visita ao que era apenas o sítio de seu avô. Estamos escondidos atrás de uma árvore trocando alguns beijos clandestinos, pois não éramos namorados, mas estávamos apaixonados um pelo outro. Tínhamos a vida toda pela frente. Sinto falta de Lennon, nosso cachorro, que teve de ser sacrificado meses atrás. Ele sempre me acompanhava nas andanças pelos bosques. Meu sobrinho Dudu caminha comigo, dando nome às plantas e revelando-me que tem pescado diariamente, geralmente traíras. Nota que uma das varas posicionada à beira do lago está com a ponta afundada na água. Ergue o bambu e constata que a traíra pescada é muito pequena. Olho para o outro lado do lago e vejo Juju e Chico pequenininhos, caminhando com Lia e o vô Paulinho em direção à trilha que leva à cachoeira. Aproximo-me, e eles estão dando nome às plantas. Ao chegarem à cachoeira, intrépidos, escalam as pedras, sob orientação da mãe, e se banham na água fria. Faço, sem que percebam, uma foto deles três, na trilha, de mãos dadas. Essa foto está em um de nossos álbuns de família. Assim que saem, percebo um grupo grande de amigos se banhando na mesma cachoeira, e outro, e outro, diferentes grupos de amigos que ali estiveram conosco, naquele lugar mágico, agora todos juntos, reunidos, em meio à mata virgem e sob a luz do sol que ilumina a clareira. Dudu me pede para ir à cachoeira com ele. Juju também quer. Eu enrolo, o tempo passa, desistimos. Não tive dificuldades de dormir no quarto que costumávamos usar quando visitávamos o Viramorro. Nele, sonhei com ela, ouvi sua voz na madrugada. Mas percorrer a trilha da cachoeira me assombra, dói muito a ausência e a presença.

Lu, minha sogra, sai pela área de serviço para fumar um cigarro. Vou atrás dela. Cada um acende o seu, o dela mentolado, o meu um Marlboro bem forte. Nos abraçamos e nos declaramos um ao outro. Sinto um amor profundo por Lu, algo que talvez só a dor partilhada seja capaz de gerar. Fomos conectados por Lia, ela, a mãe de minha companheira, eu, o companheiro de sua filha. Por décadas, convivemos, com respeito, carinho e algumas poucas diferenças, posto que somos feitos da mesma madeira. Olho para aquela mulher que costuma ser tão forte e assertiva e vejo no fundo de seus olhos a tristeza que só a reversão da ordem natural das coisas causa. Nenhuma mãe merece cremar uma filha. Ela me conta que, quando Lia nasceu, seu sogro, que fez o parto, agarrou a menininha, a primeira neta, e saiu dançando pelos corredores do hospital. Lia chegou ao mundo dançando. Na última conversa de despedida, na véspera da passagem, Lu desejou à filha que fosse recebida do outro lado por um baile promovido por seus ancestrais. Tenho certeza que foi isso que ela encontrou no fim do túnel ou do arco-íris. Também me conta que quando ela tinha dois anos, olhou para o céu e disse: “Mamãe, olha lá a lua”. Essa teria sido uma de suas primeiras frases completas. Duas histórias que eu desconhecia e que me fazem sentir ainda mais saudade de minha amada bailarina lunar. De dentro da casa, alguém nos chama para um brinde. Entro pela sala e penso que Lia adoraria estar ali, conosco, acolhida, entre seus amores. Olho para Caetano, que tenta engatinhar para catar algum dos brinquedinhos do chão, e me sinto em casa outra vez…

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Jornalista, escritor e produtor cultural. Um dos fundadores e atualmente diretor-executivo do Instituto Procomum. Cursa doutorado em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e tem alguns livros publicados no Brasil e no exterior. Vive em Santos, com seus dois filhos.