Foto: Divulgação/Fiocruz

“O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. 

Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo”.

(Rainer Maria Rilke).

Em um dia rotineiro de trabalho, às oito horas da manhã, percebo que na agenda está a Maurita, alagoana, que acompanha comigo há anos, e estava numa consulta bastante decisiva de sua vida: receber o resultado de uma tomografia que diria se sua doença se mantinha estável ou se as novas dores significariam uma necessidade de retomada do tratamento de quimioterapia.

Nós duas estávamos bem tensas com esse momento. Analisando os exames, a notícia foi boa, estava tudo bem. Talvez as novas dores tenham sido do excesso de atividades físicas que ela vem praticando desde que tomou gosto por pedaladas de longa distância. Após os nossos sorrisos aliviados, ela me olhou e disse: “Muito obrigada por cuidar de mim. Na minha vida, abaixo de Deus, está a senhora”.

Talvez para alguns profissionais, essa fala represente uma grande confiança no trabalho. Mas para mim, isso demostra o tamanho da responsabilidade de cada decisão que tomo em relação à vida dos outros. E para isso, é difícil se sentir preparada. As decisões que compartilho sobre a vida das pessoas vão desde orientações do que podem comer, se podem beber, até decisões tão difíceis que marcam a minha travessia e a do paciente.

Jéssica foi uma das pessoas que passaram pela minha vida para que eu aprendesse sobre o amor, e com quem compartilhei umas das decisões mais difíceis na prática médica. Ela tinha 37 anos e três filhos: dois adolescentes de 17 e 15 anos e uma criança de 7 anos. Tinha uma união sólida com o Lúcio, pai dos seus filhos. Tomou anticoncepcional pelos últimos sete anos, porque não desejava mais engravidar. Se sentia completa e, com trabalho suficiente com seus três filhos, contornava as dificuldades da vida financeira e agora, com as crianças mais crescidas, conseguia ter mais tempo para cuidar de si.

Teve uma infecção urinária e após uso de antibiótico, engravidou do quarto filho. Ainda sem saber da gestação, desenvolveu um sangramento vaginal, procurou um médico que deu a notícia de uma lesão suspeita no colo uterino. Quando fez um ultrassom para entender melhor o avanço da doença descobriu que estava grávida. Teve que lidar com duas notícias simultâneas: uma gravidez inesperada e um câncer uterino. Vida e morte se misturando no ciclo do viver.

Mas as decisões difíceis começariam agora tendo que pesar sobre como fazer um tratamento oncológico no útero diante de uma gestação. Enxergamos duas possibilidades: interrupção da gestação e iniciar imediatamente tratamento de radioterapia local no útero ou seguimento da gestação, com a realização de alguma quimioterapia que não ultrapassasse a placenta e pudesse ser feita protegendo o bebê.

No final da nossa primeira conversa perguntei, ainda de modo sutil, se ela já tinha uma opinião formada a respeito. Fiz essa pergunta assim mesmo, com o aborto entendido nas entrelinhas. Jéssica era uma ótima entendedora, e me disse rapidamente: “Eu ainda não decidi, mas à princípio opto pelo bebê”.

Mas como as decisões devem ser amadurecidas, pedi que ela pensasse, que conversasse de novo com seu marido, que desde o começo não concordou com sua decisão, e combinei de voltar em um outro momento para retomarmos a conversa.

Voltei no outro dia e falei um pouco mais sobre os riscos de se levar essa gestação adiante, e ela estava mais segura, com o bebê em seu coração e decidida a não abortar. Voltamos uma semana depois para a decisão final. Entramos em uma sala eu, outros colegas profissionais de saúde, Jéssica e Lúcio. Pelo que me lembro, comecei nossa conversa da seguinte forma:

– Você teve essa semana para refletir sobre o que conversamos a respeito da gestação e sobre os riscos de mantê-la. Como está agora sua decisão?

– Minha decisão é seguir em frente com a gestação. Não quero tirar o bebê.

– Sua decisão será respeitada. Mas você entende o risco que corre?

– Sim, eu sei que posso morrer.

Daquele momento em diante a nossa conversa não tinha mais sentido. Ela estava disposta a morrer para que esse quarto filho nascesse. Sua decisão foi respeitada e seguimos os tratamentos médicos, de acordo com o plano terapêutico em conjunto.

Desde o começo, foi muito importante a presença da nossa equipe multidisciplinar para acolhimento das demandas que se apresentavam, em especial o conflito entre ela e o marido que, desde o princípio, queria o tratamento que tivesse maior chance de resposta mesmo que para isso tivesse que interromper a gestação.

Qual seria a opção correta? Ou a pergunta aqui deveria ser qual seria a opção menos danosa? Será que Deus nos ajudaria nessa tomada de decisão?! E eu, como médica, abaixo Dele, estou preparada para decidir? Meus valores individuais influenciaram nessa conduta? É um peso muito grande. Ainda mais envolvendo a manutenção ou não da gestação, o que divide opiniões. Gestação é sagrada? A vida da mãe importa mais? Esse feto, ainda em formação, é um ser vivo?

Durante a faculdade de medicina, nunca me aprofundei em reflexões sobre como esbarramos diariamente nas expectativas de milagres e nas reflexões sobre o sagrado. E como isso tudo está no nosso cotidiano.

No livro “Por que não sou cristão” há um ensaio de Pierre Bourdieu e Bertrand Russel que diz que, de fato, o sagrado e o profano são uma construção social, mas nessa construção não são todos que participam com a mesma eficácia. A sociedade se especializou e esta definição é obra de especialistas que muitas vezes divergem de opinião. E como divergimos de opinião!

As experiências de milagres também ocorrem desde que estejamos abertos para ver. Esse ano acompanhei a história de um senhor que ficou acamado e paraplégico por uma lesão na medula espinhal, quando cheguei a ensaiar uma conversa sobre morte com a filha.

Mas, como não somos donos da razão, hoje, após o tratamento, ele é motorista de Uber trabalhando de 12 a 13 horas por dia atrás de um volante. Quando o questiono sobre o tempo de vida dedicado a esse trabalho bem desgastante, ele me olha bem profundamente e me diz que nada o deixa mais feliz do que ter energia física de poder trabalhar, mesmo que sejam tantas horas por dia. Que sua experiência do quase morrer o encheu de vida, que não tem tempo a perder.

Para mim, adentrar no abstrato campo religioso é um desafio, porque muitas vezes me parece que, para algumas instituições, este espaço é somente para alguns merecedores. O capital religioso está associado a uma posição social que não deixa de ser uma disputa por um troféu fabricado por nós mesmos. Não é um espaço livre para todos, há regras de merecimento.

Mas a religião anda com a ciência na medida em que uma se preocupa com o propósito da vida e a outra com a relação causal entre os fatos. E a vida me tem sido uma grande escola, amplio cada dia mais minhas experiências com o não totalmente explicável. E, acima de tudo, percebo que a espiritualidade faz parte da nossa essência, e que a forma de se vivenciá-la pode ser ou não por escolhas religiosas.

Por isso, essa semana, diante de uma familiar em grande sofrimento pela doença de sua irmã, quando ela me disse: “a gente acredita no milagre até o último suspiro”, eu respondi que eu também. Afinal, como diz o Caetano Veloso, “quem é ateu e viu milagres como eu”.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista