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Bruno Latour é um filósofo e antropólogo francês, que se tornou conhecido mundialmente ao lado do engenheiro de minas, Michel Callon, por terem elaborado a teoria do ator-rede, também conhecida como sociologia da tradução ou sociologia da inovação.

Esses autores criaram o conceito de rede sociotécnica e a definiram como um conjunto de atores humanos e elementos não humanos em cooperação. Assim, nenhuma ideia, inovação ou projeto se viabiliza por suas qualidades próprias, é a rede que se forma que será responsável pelo sucesso ou insucesso da iniciativa.

Essa teoria pode orientar a elaboração e operacionalização de projetos, assim como pode ser utilizada para entender os processos que determinaram os resultados por meio da abertura da “caixa-preta” das relações que foram estabelecidas.

Atualmente, a teoria do ator-rede é adotada por organizações em que seus dirigentes compreendem que a viabilidade de projetos, inovações e ações está vinculada à construção de redes sociotécnicas.

Há alguns anos Bruno Latour passou a se preocupar com o que denomina Novo Regime Climático, compreendido como o resultado das transformações a que o mundo é submetido, devido à adoção de sistemas de produção e consumo que não consideraram o meio ambiente como um “actante”, ou seja, um ator social não humano que o integrava.

Foram priorizados os lucros advindos da produção e ignoraram de forma intencional a limitação dos recursos naturais, visto que cientistas já apontavam os problemas em curso.

Recentemente, Latour publicou dois livros com a temática ambiental: “Diante de Gaia – Oito Conferências sobre a Natureza no Antropoceno” e “Onde Aterrar? Como se Orientar Politicamente no Antropoceno”.

Sobre este segundo livro, no título original, em francês, utiliza o termo atterrir, que em português corresponde a aterrissar. No entanto, o editor optou por aterrar na tradução por reforçar a presença da Terra, que dá mais sentido à abordagem feita pelo autor francês. Além disso, Tom Jobim já utilizara aterrar no “Samba do Avião”, que expressa o sentido do seu encontro com o território de seu pertencimento, o Rio de Janeiro.

Antropoceno é um termo que aparece nos dois livros citados e se refere ao período que se inicia em 1800, segundo o autor e outros cientistas, e que coincide com a Revolução Industrial, e se caracteriza pelas profundas transformações ambientais provocadas pelas ações humanas sobre o planeta.

Este termo não é reconhecido pelas instituições competentes da Associação Internacional de Geologia, pois os geólogos consideram que estamos no Holoceno há cerca de 12 mil anos, com o fim da última era glacial. Latour adverte que os geólogos não têm muita pressa, pois estão habituados a pensar o tempo em escala própria, de milhões e bilhões de anos.

O autor alerta que não passamos por uma crise ecológica, mas podemos estar no que é denominada mutação ambiental. Neste caso, não haveria mais retorno para vivermos sem as ameaças causadas por parte da própria humanidade, por meio de industrialização acentuada, consumo acima das necessidades por parte da população, notadamente no hemisfério norte, secas, queimadas, desmatamento, agricultura praticada em monocultivo fundamentada no uso de agrotóxicos, poluentes na atmosfera, rios, mares e plástico em todos os cantos.

Esse é o resultado de uma modernização como modelo único de desenvolvimento, que prometia uma vida melhor para todos por meio da sua imposição pela globalização. Com o fracasso desse modelo, observa-se que as classes dominantes obscurantistas movem-se para salvar a própria pele e aprofundam as desigualdades sociais, promovem a desregulamentação ambiental e das relações trabalhistas e praticam o negacionismo.

A pandemia provocada pelo coronavírus é resultado deste processo, como se fosse uma reação da natureza às ações humanas. Porém, vitimiza, principalmente, os mais pobres, aqueles que não têm habitação e alimentação adequadas e necessitam trabalhar para que outros fiquem em afastamento social.

Latour afirma: “De agora em diante, o sistema terra reage à sua ação, de modo que você não mais dispõe de uma paisagem estável e indiferente para alojar seus desejos de modernização”.

Curiosamente, a mutação climática que caracteriza o Antropoceno não foi causada pelo conjunto dos seres humanos. Os indígenas, por exemplo, nada têm a ver com esse processo ou aqueles que se se alimentam e se vestem de forma precária.

Assim, há autores que descartam os termos Holoceno e Antropoceno e chamam esta era geo-social como Capitaloceno, para apontar com mais clareza a origem do processo de mutação climática responsável pelo desaparecimento de espécies animais e vegetais e que coloca a humanidade também em vulnerabilidade, pois somos também terrestres, apesar da tendência de se achar que os humanos não integram a natureza, que serviria apenas como objeto de contemplação ou de fornecimento de recursos.

É comum encontrarmos críticas aos eleitores de Donald Trump e Jair Bolsonaro, presidentes financiadores da modernização e do negacionismo. Aqueles que os colocaram no poder por meio do voto são tratados por muitos democratas, socialistas e ambientalistas como se fossem idiotas ou descerebrados.

Latour afirma que a escolha pelo populismo de extrema direita por parte da população dos dois países relaciona-se com a decepção causada pela exclusão da maioria do acesso aos benefícios da mesma modernidade, que são direcionados para poucos, e foram prometidos para muitos.

Dessa forma, esses eleitores que optaram pelos dois presidentes de extrema direita ignoraram os reais motivos determinantes pela situação pela qual passam e se entregaram ao discurso elaborado para confundir, aquele do Estado nacionalista autoritário, que exclui imigrantes e projeta a construção de muros, que aponta os pobres como responsáveis pela sua própria desgraça por não serem empreendedores e, por isso, não devem ter acesso a programas sociais, que o Brasil tem o direito de destruir suas matas para o agronegócio, madeireiras e mineradoras, por ser uma questão de soberania nacional e que a ciência é inteiramente descartável.

Na sua análise, Latour também considera que, historicamente, houve um distanciamento entre os movimentos socialista e ambientalista. As pautas ambientais somente foram incorporadas há três décadas por aqueles que centravam a sua luta na socialização dos meios de produção ou, no mínimo, melhor distribuição de renda. 

Por outro lado, as reivindicações sociais também foram consideradas somente recentemente pelos ecologistas. Enquanto havia esse distanciamento, consolidou-se um modelo de desenvolvimento que não atendia às reivindicações dos dois grupos.

No entanto, para o autor, é insuficiente juntar forças ou associar pautas de reivindicação na atualidade sem que haja uma proximidade de propósitos expressada em ações concretas. Exige-se algo ainda maior, que seria a criação de um novo atrator político, definido por aterrar, que não considere somente os seres humanos, mas também os não humanos que compartilham o espaço conosco: animais, florestas, ar, mar etc.

Assim, somos todos terrestres que devemos nos lançar em um processo de construção de territórios, que valorize as práticas, que promova a interrupção da globalização, que valorize o local de forma que consigamos construir redes sociotécnicas constituídas por saberes tradicionais em interação com o conhecimento gerado pela ciência.

É necessária a mobilização dos talentos existentes para a construção de um cenário acolhedor, que garanta melhoria da qualidade de vida dos terrestres em integração.

Lança o desafio de fazermos um inventário dos modos de existência no território onde desejamos aterrar e apontemos e operacionalizemos os caminhos.

Para isso, há a necessidade de realização de alianças políticas, que podem estar além das posições mais conservadoras da esquerda e do centro, dependendo do olhar, para que se construam relações de solidariedade, que possam viabilizar a vida, dos humanos e não humanos, ou seja dos terrestres. Isso, sem abandonar a análise marxiana da sociedade de classes, mas considerando que há diferentes segmentos em cada classe.

Por fim, Latour aponta o território que deseja aterrar: a sua Europa. Aterrar assume um movimento em que o continente não negue que colonizou diferentes países, impondo os seus modos de vida e exploração dos recursos naturais com promoção da miséria, que inventou a globalização fracassada.

O resultado dessas ações é a migração em massa daqueles que, agora destruídos, buscam um solo para viver em segurança. O autor defende uma Europa acolhedora dos imigrantes, com qualidade de vida fundamentada na harmonia entre humanos e não humanos e que fique para outros países a necessidade de colonização, como EUA, China e Rússia.

Aterrar na Baixada Santista não pode ser entendido como um movimento individual, mas a operacionalização de um conjunto de propostas por uma rede sociotécnica para se construir uma outra governança, democrática e inclusiva.

Em nosso aterrar não podemos admitir atos impostos pelas classes dominantes obscurantistas, que querem implantar em Santos uma usina de incineração de resíduos. Essa prática integra a modernização que destrói toda a cadeia produtiva da reciclagem que, enfatize-se, jamais foi prioridade para os últimos governos dos nove municípios da região.

Em nome da modernidade, querem acabar com os postos de trabalho dos catadores, eliminar recursos, poluir o ar, gerar mais concentração de renda em benefício de uma minoria que, certamente, passará a gozar a vida protegida em alguma ilha da América Central, livre de poluição e, consequentemente, das doenças que são geradas.

Aterrar na Baixada Santista não se limita a impedir a instalação da usina de incineração ou a usina termoelétrica, que o governo estadual ameaçou implantar em Peruíbe e foi derrotado pelos movimentos sociais.

Requer considerar a aplicação das 54 propostas elaboradas pelo Fórum de Economia Solidária da região que contempla o que Latour denomina de interrupções da globalização e construção dos “sistemas de geração”, e não somente de produção, com a criação de conexões que possibilitam condições de existência digna para todos, humanos e não humanos, principalmente os seres que habitam as unidades de conservação.

No decorrer da apresentação das propostas observa-se um verdadeiro inventário dos recursos naturais, povos tradicionais, populações em situação de vulnerabilidade e ações necessárias para se construir em um processo de transição da governança fundamentado na solidariedade em todos os níveis. Para conhecer as propostas do FESBS para Aterrar na Baixada Santista pode-se acessar este link.  

O filósofo esloveno Slavoj Zizek, em seu livro “Pandemia – Covid-19 e a reinvenção do comunismo”, aponta a solidariedade como fator de criação de uma sociedade mais justa. Esta seria a sua reinvenção do comunismo.

Da mesma forma, o aterrar de Bruno de Latour também aponta a solidariedade como fator de construção dos territórios que tenham outra lógica, que não seja a da exclusão promovida pelas elites obscurantistas, por meio da modernização fundamentada na globalização.

Aterrar em nossa região passa, necessariamente, pela implementação das propostas elaboradas pelo Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista. No entanto, como nenhum projeto nasce bom, sendo a rede sociotécnica com seus integrantes que lhe dão um caráter heterogêneo o fator necessário para a sua viabilização, vamos construí-la. 

Uni-vos para aterrar!

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista