Foto: Sebastião Amaro

Na noite de domingo (6) pra segunda (7) eu prestei bastante atenção em todos os barulhos da rua. Não só os carros e motocicletas com escapamentos insuportavelmente desagradáveis, mas também as vozes espalhadas pelo ar pré-feriado, os passos saltitantes a caminho de algum rolê que eu, com certeza, não estaria, e até o tilintar de um talher caindo no chão na casa do vizinho que, pelo som doce e fino, eu chutaria ter sido um garfo.

– Atenção, Kamila, o presente está aqui! – ecoava dentro da minha cabeça.

E a cada som eu sentia minha alma rachar, cada vez mais forte, me cruzando de linhas e me fazendo em pedaços minúsculos e irreconhecíveis de mim, e enquanto estilhaçava, pensava: “amanhã não vai ser assim”.

E outro dia nasceu. E é sempre assim, um dia depois do outro.

Mas os barulhos do dia não causam o mesmo efeito. O corpo, mesmo desperto, pouco percebe os sons ao seu redor, e assim os ruídos que mereciam nossa atenção passam despercebidos.

No meio da correria do dia o foco se volta para os sons mais estridentes que, mesmo normais, nos parecem atingir em cheio. O choro do meu filho, por exemplo, às vezes me mata de tensão e por um minuto esqueço dos barulhos da noite (que fogem do meu controle, mas também me desconsertam), e invisto em tentativas falhas de restaurar o silêncio. Em vão, claro. Porque, afinal, criança chora.

É a forma deste indivíduo pequeno lidar com os sentimentos confusos que descobre no dia a dia. E mesmo com todas as minhas ações em direção a uma criação neurocompatível, nem sempre consigo lidar da melhor forma. Às vezes grito, outras bato portas, noutras chuto coisas, e sempre acabo ressentida por ter plena ciência que não é o meu filho que me causa tais sentimentos, e sim a exaustão de uma vida que me obriga a suportar mais do que eu gostaria e deveria precisar.

É muito difícil ser mulher, ainda mais difícil ser mãe, ainda mais ser mãe solo. Num país onde o Estado se omite e o corpo da mulher é gerenciado por homens, órgãos, não se sobra tempo para questionar sobre abandono paterno e falta de oportunidades e espaços públicos que viabilizem essa existência de forma digna.

É difícil, mais do que eu consigo expressar com o meu vocabulário, mas ainda mais difícil é ser criança num mundo de adultos cansados, sobrecarregados, violentados por um governo que trabalha em benefício próprio, de acordo com interesses pessoais.

De segunda pra terça eu também prestei atenção nos sons da noite. Desta vez, o que ouvi foi o cricrilar dos grilos, o coachar de um sapo, o latido de um cão vagando pelas ruas livre, talvez faminto. No silêncio absoluto de um lugar sem trânsito noturno, pude ouvir o vento cantar que eu voei para o lugar que precisava.

E nem sempre se pode ir, e tudo que desejamos, vez ou outra, é exatamente partir para perceber que o mundo continua a girar, os bebês continuam a nascer e só você pode continuar sendo você.

E esse é o seu poder.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Kamila Drieli
Escritora, mãe, mulher e formada em Biologia Marinha. Na infância, lia livros de fantasia. Com o passar do tempo, a escrita se tornou essencial. Seu primeiro livro – “A Portadora da Luz” – está disponível na Amazon. Hoje, ela usa diferentes meios para se expressar: música, desenho, poesia e fotografia.