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”(…)a educação médica os prepara para oficiais

maiores da ciência e gerentes de biotecnologias

complexas, sabemos mexer com aparelhos,

sabemos ver exames e esquecendo de ver pessoas,

não interagindo com nós seres biopsicossociais (…)”

(Bernad Lown).

Há feridas na alma para as quais não existe tratamento médico. Quando Maria Carminha tinha 5 anos, no interior de Minas Gerais, estava brincando na beira do rio com os seus cinco irmãos acompanhando a sua mãe, que lavava roupas. De sua pequena estatura viu pernas com sapatos elegantes se aproximando, circundando ela e a sua família. Sua mãe olhou pra cima e disse:

“Quem vocês querem?”.

E eles responderam:

“A menina”.

No momento seguinte, ela estava em um carro indo em direção a uma nova vida sem nem ter se despedido de nada ou ninguém. Começou a chorar. Tentaram acalmá-la com pirulitos e balas, mas seu coração amedrontado de criança não deu espaço para os doces de “recompensa”.

Essa história foi contada para mim quando essa criança tinha mais de sessenta anos. A conheci porque veio comigo para cuidar de um câncer de mama. Ela fez o diagnóstico precoce e está, desde o término do tratamento, curada. No seu corpo não há sinal de nenhuma doença oncológica. Mas, a sua alma nunca se curou.

A primeira coisa que me chamou a atenção, ainda no começo da minha relação com Carminha, era a sua tristeza e a sua falta de sorrisos.

Mesmo após o término do tratamento de quimioterapia, quando recuperou os cabelos e a aparência e já não indicava nenhum estigma oncológico, seus olhos não brilhavam, parecia que economizava expressões e nunca deixava transparecer sentimentos. Um dia, assim despretensiosamente, perguntei a ela a causa dessa falta de encanto pela vida e ela me contou a sua história.

Filha de um bugre e de uma mameluca, com traços que não escondem sua ancestralidade. Pele de tom bronze, cabelos pretos e lisos, poucos fios brancos, apesar da idade. Olhos bem pretos e amendoados.

Desde a primeira consulta vem com a irmã, Cristina, branca de olhos azuis. A relação de afeto delas é linda, uma irmandade além de qualquer consanguinidade que começou no Paraná, aonde Carminha foi levada para ser explorada em um trabalho infantil. Não foi para a escola, não recebeu roupas que a protegessem do frio da região.

O pai de Cristina, que era vizinho da família que a apreendeu, percebeu uma criança que brincava com sua filha na rua sempre com vestidos de estopa e de chinelos. Compreendendo toda a história da menina, a acolheu, a adotou, providenciou documentos para que ela tivesse garantia dos seus direitos de cidadã. Nasceu um amor que não foi capaz de desconstruir a tristeza do abandono.

Ela foi para a escola, cursou pedagogia, fez questão de crescer intelectualmente, mas a sua ferida segue latente. Com o advento das redes sociais, ela procurou a própria família, disse que somente queria perguntar pra mãe o porquê de ter sido abandonada. Mas, não encontrou ninguém, afinal não sabia o nome de seus irmãos, sabia apenas apelidos e os primeiros nomes. Não sabia o sobrenome de sua família, não sabia por onde começar. Chegou a abordar moradores da cidade. Ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, não obteve nenhuma informação.

Quando a atendo, penso no que eu, médica, posso fazer por ela. Como amenizar essa dor e essa tristeza que a acompanham há tantas décadas de vida?! O sentimento de impotência da minha parte é muito significativo. E tenho convicção de que não há medicação que resolva. Estamos no campo dos afetos, das mágoas e dos desafios do viver.

Queria que ela perdoasse essa história. Não perdoar os personagens, porque imagino que seja bem mais difícil. Mas, se libertar desse peso e tentar fluir na vida que ainda tem pela frente, com um corpo saudável.

Eliane Brum, jornalista e escritora, diz em seu texto “Memória é tanto lembrar quanto esquecer” que “escolher o que lembrar e o que esquecer é também um ato de amor”. Creio que isso pode ser trabalhado com a Carminha em uma atuação multiprofissional em saúde.

Médicos e médicas são uma peça do cuidar. Juntos e juntas com enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, psicólogos, farmacêuticos, assistentes sociais,  vão cuidar de cada uma das complexidades humanas. O cuidado paliativo tem em sua essência essa filosofia do cuidar coletivamente. Ninguém faz cuidado paliativo sozinha ou sozinho.

Eu aprendi isso com uma outra mulher de quem cuidei. Aos 38 anos, descobriu um câncer de intestino já avançado. Ela era casada, tinha três filhos, evangélica com muita esperança na cura. E tinha uma dor que era intratável.

Eu usei de todos os recursos medicamentosos que tinha em mãos e a dor não saciava. Acabei a internando para poder ajustar melhor as medicações. Durante a internação, começou a ser atendida por outros profissionais que atuam no hospital, em especial psicologia e o serviço social.

Essa equipe identificou a causa de sua dor: violência doméstica e medo de que, na morte, as agressões atingissem os filhos. A internação, então, foi toda pautada na proteção dessa mulher e de suas crianças. A dor amenizou.

Essa dor física que tem origem não necessariamente biológica chamamos de dor total. Envolve a complexidade de elementos físicos, emocionais, sociais e espirituais. 

Entender a complexidade humana faz parte do cuidar das pessoas. Ingênuos são os que acham que apenas com seu estetoscópio, carimbo e consultório particular irão resolver todas as demandas que surgirem. Somos multidimensionais e somente uma visão integrada e coletiva pode oferecer minimamente algum suporte efetivo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista