Por Paula Ravanelli*
A Lei nº 14.026/2020, que estabelece um novo “Marco Regulatório do Saneamento”, foi promulgada recentemente. Sua aprovação em meio à pandemia, feita à toque de caixa, sem a devida discussão com a sociedade, foi de um oportunismo poucas vezes visto em se tratando de bens e direitos universais dos brasileiros: água potável, coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos (lixo).
Aqui em Cubatão, no mesmo período, houve a reprodução na esfera municipal dessa mesma forma sorrateira de tratar um bem público. A prefeitura celebrou contrato com a Sabesp, sem licitação, no qual fica pactuado o saneamento básico da cidade até 2047. Isso se deu poucos dias antes de entrar em vigor a nova lei, que proíbe a contratação das companhias estaduais sem prévio procedimento licitatório.
Ao justificar a assinatura, o chefe do Executivo cubatense alegou que, com o contrato, chegou ao fim um impasse que durava quase dez anos. Sim, dez anos de parcos debates com a sociedade e apenas uma audiência pública, em 12 de dezembro do ano passado, para cumprir a formalidade. Ou seja, com as festas de fim de ano, férias de verão e a chegada do coronavírus, as discussões sequer existiram na prática
O saneamento básico de Cubatão é ruim. Os números do Sistema Nacional de Informações de Saneamento – Snis, referentes à 2018 (último divulgado), deixam isso muito claro. Apesar de a população da cidade ser de aproximadamente 130 mil pessoas, o abastecimento de água só chega à 110 mil pessoas. Ou seja, em pleno Século XXI, segundo dados oficiais, a nossa cidade possui mais de 19 mil pessoas sem acesso à rede de água.
No esgotamento sanitário a situação é ainda pior. Pelo Snis 2018, a população atendida é de apenas 69.778 pessoas, ou seja, 46% da população de Cubatão não possui acesso a uma rede de esgotamento sanitário.
Os números são chocantes. Porque significam mortalidade infantil, diminuição da produtividade no trabalho, menor rendimento escolar, aumento de doenças por vetor hídrico, pressionando o sistema público de saúde. Isso explica os indicadores altíssimos de Cubatão em casos e mortes por Covid-19.
Pelo contrato com a Sabesp, até 2047 a cidade terá coleta e tratamento de esgoto de 95%. Ou seja, os outros 5%, que juntos seriam cerca de 8 mil pessoas atualmente, nunca estarão contemplados nos próximos 27 anos. Os investimentos, ainda pelo contrato, serão de R$ 310 milhões em 27 anos, e o repasse anual à prefeitura de 4% do faturamento, que somariam R$ 1,8 milhão neste ano.
Ou seja, feitas as contas, o faturamento anual da Sabesp hoje em Cubatão é estimado em R$ 45 milhões. Ao longo de 27 anos seria de cerca de R$ 1,2 bilhão. Descontados 48,6 milhões para a fatia da prefeitura e outros R$ 310 milhões em obras, sobrariam brutos módicos R$ 841,4 milhões. Parece um bom negócio para a Sabesp. Talvez isso explique por que se quis evitar a todo custo o debate com a sociedade e a concorrência pública para a escolha da concessionária.
Voltando ao marco regulatório, ele não ajuda. Simplesmente induz a privatização dos serviços, na contramão da experiência internacional. França, Holanda e Alemanha, onde privatizaram seus serviços de saneamento, recuaram e voltaram a entender o saneamento com algo público e universal.
Como exemplos, temos Paris, que rompeu com concessão privada e criou um prestador público; temos também Munique, na Alemanha, que fez o mesmo. Recentemente, este movimento chegou a Portugal, onde o Município de Mafra rompeu contrato de concessão, para que os serviços passassem a ser prestados por um prestador público municipal.
Temos exemplos também no Brasil. Manaus, que vive há mais de vinte anos com uma concessão privada de saneamento, é a capital com os piores serviços do país, configurando o absurdo de milhares de pessoas sem rede de água quando, ao lado da cidade, passa o maior rio de água doce do mundo.
Também em Itu a privatização acabou em tragédia, com sérios problemas de saúde pública, obrigando o município a romper a concessão privada e criar um prestador público municipal. Só assim os serviços melhoraram.
Essa celebração de contrato relâmpago com a Sabesp se insere nessa lógica privatizante do novo marco regulatório do saneamento básico. Não foi só Cubatão, mas, recentemente, também outros municípios, como Mauá ou Ilhabela, celebraram contratos com a Sabesp.
A lógica é renovar os contratos para se privatizar. Cubatão celebrou contrato com a Sabesp, mas, na realidade, o município nem sabe para quem ela será vendida e se realmente o saneamento no município vai melhorar.
Saneamento privatizado significa tarifas mais caras, muitas vezes incompatíveis com a renda das famílias pobres. Significa estímulo ao consumo de água, porque quanto mais se vende água, mais se aumenta o faturamento dessas empresas privadas, com impactos ambientais desastrosos. A mesma lógica se aplica ao esgoto e ao lixo, quanto mais, melhor para a iniciativa privada, que ganha por tonelada da sua coleta e tratamento.
A sociedade e os municípios têm um papel fundamental para assegurar que água, bem essencial à vida, esteja acessível a todos.
Privatizar o tratamento da água e esgoto, elevar tarifas e marginalizar ainda mais as famílias pobres não é uma solução. Não adianta dizer que 4% da arrecadação vai para o município. A questão maior é ambiental e de saúde pública.
O que parece vantajoso financeiramente logo se desfará no aumento de custos com a saúde pública e com a queda da qualidade de vida dos cubatenses. A crise sanitária que estamos vivendo escancarou isso. Cubatão pede socorro. Vamos resistir.
*Paula Ravanelli é procuradora municipal e pré-candidata do PT à Prefeitura de Cubatão.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.