“Que se há de fazer com a verdade de que
todo mundo é um pouco triste e um pouco só”.
Clarice Lispector.
O último parque de diversões em que estive foi no Ceará, na pequena cidade de Nova Olinda, em um domingo, no começo de 2020. A cidade, de quinze mil habitantes, comemorava a festa do carregamento do pau da bandeira, evento religioso ao seu padroeiro São Sebastião. Era uma noite quente de janeiro com uma lua cheia bem amarela. Me senti num filme nacional dirigido por Kleber Mendonça Filho. Até imaginava a trilha sonora nas minhas tomadas: “Juliana girando, oi na roda gigante”…
Não tinha roda gigante no modesto parque, mas andei num barco viking e em um outro brinquedo em que nos chacoalhávamos bastante. Balançamos tanto o corpo e a alma que, em alguns momentos, parecia que o espírito podia escapar por aí e dar uma voltinha pelo Cariri. Naquela noite também me aventurei num carrinho de bate-bate com recém amigos. Queria muito ter provado um algodão doce cor-de-rosa que tingia a língua de todos que o comiam. Pena que não tolero muito doces… Foi um momento memorável.
Adoro parque de diversões! Sempre fui fã de montanha-russa e andei em brinquedos como o que chamo de elevador. É uma torre equivalente a um prédio de mais de vinte andares em que os participantes caem em queda livre. Me divertia, apesar de tremer quando o banco estava para despencar, o que mostra que prezo pela minha vida.
Nesse momento pandêmico, vivo em uma constante montanha-russa de sentimentos, bem diferente das minhas experiências prévias divertidas. E me sinto muitas vezes em queda livre como no brinquedo mais alto dos parques. Ver o número de mortos crescer exponencialmente é demais. Hoje, enquanto escrevo, são 292.752 mortes. Sentir a doença batendo à sua porta e acometendo pessoas próximas a você é lancinante. É a própria tragédia sentada com você no sofá da sua casa, ocupando um espaço que antes era só do seu íntimo.
Vou para o quarto, mas a presença ainda é maior quando tento dormir e penso em como alguém pode respirar com a ajuda de aparelhos. Inspiro o ar, sinto meu pulmão encher, como é bom… Medito… Me acalmo… Durmo até a hora em que esses pensamentos voltam a bater em meu coração e me despertam: será que uma pessoa sedada e desnuda em uma UTI sente frio? Tento transformar a dor em criação, escrevendo. Leio um livro, vejo um filme, mas logo um looping me coloca de novo na tristeza.
Oscilo momentos de confiança e medo de forma súbita, em um instante. Em um mesmo dia consigo ser uma mulher fragmentada tendo diversas personalidades. Procuro ajuda de pessoas que escutem a minha dor. Os sentimentos são como ondas: vêm e te inundam. Podemos deixá-los nos atravessarem ou podemos nos afogar. Acho que agora tenho tomado mais caldos do que qualquer outra coisa. Sinto-me sem fôlego, muitas vezes sem chão, nadando sem terra à vista.
Yara é uma professora do ensino fundamental que tinha dois amores na vida: sua mãe e dar aula. Foi filha de coração de uma italiana e tinha muita gratidão pelo amor e cumplicidade que elas construíram. Sua mãe faleceu quando ela tinha cerca de quarenta anos e seu luto foi muito doloroso e complicado. Refere ter perdido a vontade de viver, não se via no mundo sem o seu amor.
Desenvolveu um câncer de mama descoberto precocemente em um exame de rotina. Fez todo o tratamento, que implicou em cirurgia de retirada da mama e quimioterapia com perda de seus cabelos. O processo de adoecimento a reconectou com o seu desejo de viver. Ao final dessa travessia, está curada e afirma que a experiência a ensinou a prezar pela vida e resgatou essa vontade como no dia em que ela foi adotada.
Luiz é um comerciante e está preocupado com seu serviço neste ano pandêmico. Afirma que adora trabalhar e tenta escapar do excesso de zelo da esposa que não quer que ele se canse. Ela tem medo de que a quimioterapia não tenha o mesmo resultado, entende que o efeito é melhor caso ele fique em repouso.
Ele tem um câncer com metástases no fígado e faz tratamento oncológico há três anos. Nunca deixou de fazer nada que lhe dá prazer, apesar de semanalmente ir ao hospital para receber medicações na veia e de enfrentar efeitos colaterais nada agradáveis.
Esta semana, tivemos uma consulta decisiva, porque ele trouxe uns exames de imagens que evidenciaram que sua doença havia piorado e decidimos por modificar seu tratamento. Muito tranquilamente ele me disse que não estava assustado ou triste, que entende que deve tratar sua doença como amiga e que o centro de sua vida é ele e não ela.
Isso me lembra um texto de Rubem Alves, psicanalista e teólogo, chamado “A Doença” que diz: “(…) senti o susto na sua voz ao telefone. Você descobriu que está doente de um jeito diferente, como nunca esteve. Há jeitos de estar doente, de acordo com os jeitos da doença. Algumas doenças são visitas: chegam sem avisar, perturbam a paz da casa e se vão. É o caso de uma perna quebrada, de uma apendicite, de um resfriado, de um sarampo. Passado tempo certo, a doença arruma a mala e diz adeus. E tudo volta a ser como foi. Outras doenças vêm para ficar. É inútil reclamar. Sem vêm para ficar, é preciso fazer com elas o que a gente faria caso alguém se mudasse definitivamente para a nossa casa: arrumar as coisas da melhor forma possível para que a convivência não seja dolorosa. Quem sabe pode até tirar proveito da situação?”.
O coronavírus não me parece uma doença visita. Ele chegou como nuvens espessas no céu de todo o planeta e deixou nosso ar pesado. Está difícil de nos movermos, de respirarmos, parecemos estagnados em um mundo sem abraços, sem encontros e sem leitos hospitalares suficientes.
O mundo inteiro está tendo que se reinventar e pensar em políticas públicas coletivas que garantam a segurança e a vacinação da população. É uma tragédia com perdas impactantes de escalas ainda não mensuradas. O número estimado de pessoas enlutadas é dez vezes maior do que o número de mortos, podemos dizer que em breve seremos uma legião de três milhões de enlutados. Quantos seremos ao final de tudo isso?
Arrumo meu sofá, estico meu lençol, arrumo minha casa para acomodar esses sentimentos que vieram ficar de dentro de mim. Tento enxergar as possibilidades de dias ou períodos imperfeitos. Talvez escolher a forma como olhar para eles determine minhas escolhas e minha vida. É também um ato libertador. Deito na cama lendo Clarice Lispector e já identifico sinais:
“sou composta de urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas”.
Deleito-me com minha intensidade. Espero ansiosamente pelas minhas alegrias.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista