A coluna de hoje é diferente. A poesia me atinge de forma impossível de explicar e, ainda que eu tentasse, sei que seria vã a tentativa de traduzir exatamente como os versos, linha após linha, me atravessam.
Nos últimos dias estou imersa no meu novo livro, escrevendo muito, dando vazão aos meus rios inteiros, revoltos e cheios, transbordando em palavras para escoar o que sinto. A coluna de hoje é uma poesia, porque a poesia é o que eu tenho de mais bonito.
“CHUVA”
eu abro os olhos e ouço a chuva cair
o mundo não dormiu comigo
ninguém dormiu
levanto da cama e faço café
vejo as gotas repousando sobre uma folha verde
as folhas devem apreciar a chuva
a água desenha uma joia
me imagino vestida com as mesmas gotas
sinto pena da humanidade
minha mente me engana
eu resisto e choro
chove lá fora
chove dentro de mim
ontem eu lhe confidenciei um segredo
hoje a natureza me chama de volta
já não lembro para onde regressar
sequer sei o que virá a seguir
curva
me emociona uma poesia
cada verso uma sentença completa
cada sentença uma mudança de comportamento
cada comportamento uma resposta
o mundo em colapso
meu peito fracionado como uma barra de chocolate
invisíveis lembranças dançam no ar
meus dedos não sabem mais como tocar
à frente vejo a extensão de mim
como uma promessa de um bem-estar futuro
como um pacto de amor eterno
eu sinto medo e me abraço
embaixo do cobertor me sinto mais segura
o sal desce e minha boca seca
minha cabeça flutua e eu durmo
corro rápido
entro numa piscina iluminada
a lua brilha e me sinto só
os espelhos me enganam
me contam coisas que não tenho certeza
duvido da minha sanidade
me comparo
me humilho
mas continuo em mim
todas as vezes que eu não sabia o que fazer
foi você quem segurou a minha mão
foi você que acariciou minha face e prometeu em cada toque
que tudo ficaria bem
o que seria tudo?
quem seria?
vislumbro um passado remoto e me orgulho da história
sou um sonho selvagem
uma alma revestida de carne e ossos
todos os anseios das minhas ancestrais correndo em minhas veias e artérias
toda a força
todo o ódio
a motriz que me carrega pela mão
uma flor nasce
uma criança chora
um tuiuiú voa sobre o pantanal ao pôr do sol
é tudo uma benção
mesmo as infinitas facas que te perfuram agora
e cada buraco aberto é um novo convite para a luz do sol
e a evolução que nos cobra revolução
os fins que não justificam os meios
os amores deixados para trás
quem saberia o que fazer na mesma situação?
quantas formas de tomar a mesma atitude existem no dicionário?
o impacto do nosso confronto ainda resiste em minha pele nua
eu ainda ando pelas ruas sem saber quem me guia
ando pela vida sem certezas do destino
as ruas e a vida me olham com escárnio
as ruas e a vida lascivas e impiedosas
como se menosprezassem meus receios
como se soubessem que eu sou capaz quando nem eu mesma ouso saber
me sentia antes desprendida
agora me vejo ciosa
inclinada a um cenobitismo que não me cai bem
fugindo dos meus impulsos e me encaixando em lugares pequenos demais
pobre criatura encolhida num canto
me dá a mão
levanta, alonga as costas
observa com olhos de águia os teus poros
deixa pra lá um pouco dessa tristeza
permita paz pro teu coração
nada é peremptório
nem o medo nem a solidão.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista