Vivo tempos difíceis. Talvez por isso teorizo fatos que vivencio, tenho sentimentos de indignação e de injustiça. Mas, o que é justo pra mim é também justo para alguém diferente? Aliás, o que é justiça? A cada dia, várias vezes tenho que me lembrar e aceitar que não tenho controle sobre a vida. Que a decisão dos outros não depende de mim, que não tenho como agradar a todos e a todas e que nem tudo que eu entendo como bom é bom para qualquer indivíduo.
Têm dias que parecem insuportáveis. Hoje foi um desses. Atendi muitas pessoas com corpos doentes, comuniquei muitas más notícias. Rompi com diversas expectativas, falando a algumas pessoas sobre piora de suas doenças, estas precisando de novos protocolos de quimioterapia. Perguntei a um senhor até onde ele estaria disposto a ir. Falei muito sobre morte e sobre vida.
Atendi também muitas pessoas com as almas doentes, com pesos sobre si que rebaixam ombros e olhares. Foi o caso de uma senhora que está com seu câncer de intestino controlado, mas com o corpo queimado por seu marido que lhe ateou fogo há cinco dias.
Respirei fundo, minha cabeça doendo, achei que não sentia o ar entrar nos meus pulmões. Me levantei da cadeira e fui até sua direção, ela estava com o seio e o braço direitos com bolhas e um curativo já sujo de secreção. Eu não sabia o que dizer, meus lábios tremiam, não queria mais olhar. Perguntei se ela estava protegida, se ela estava em local seguro. Mas, que local seria esse?! De que me adianta ter quimioterapias para oferecer, se ela não tem nem como garantir a própria segurança.
Perdi a esperança por uns segundos, tentei lembrar de algo que pudesse me fortalecer. Encontrei refúgio em Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Fui ao banheiro, lavei o rosto, tomei um café, enchi minha garrafa de água, adquiri certa coragem e fui adiante.
Entrou na minha sala uma moça que chamarei aqui de Jarina. Uma moça de 41 anos, que já tinha uma filha de mais de 20 anos e, por muitas vezes, tentou uma segunda gravidez de um tão desejado menino.
Teve cinco abortos espontâneos e suas tentativas cessaram quando, aos 38 anos, recebeu a notícia de um câncer de mama que lhe tirou o seu sonho da maternidade, os seus cabelos e o seio direito.
Após esse tratamento, aos 39 anos, se descobriu grávida de um menino. Essa gestação era de risco, em especial para ela, porque a explosão hormonal da gravidez é bem perigosa para reacender faíscas que fazem o tumor incendiar o corpo.
Por isso, conversamos sobre a possibilidade de interrupção de sua gestação, mas o sonhado Tiago já existia e ela já o amava. Decidimos, então, seguirmos juntas nessa travessia, eu ao lado dela para cuidar dela e do bebê também. Hoje, Tiago tem dois anos, e Jarina teve uma piora de sua doença, mas sem arrependimentos, porque ele veio no exato momento.
Penso novamente na falta de controle que temos. Mesmo eu não sendo especialista em saúde da mulher ou em saúde reprodutiva, biologicamente falando, as possibilidades de uma gestação numa situação dessa são bem remotas.
Qual será a lição que a vida quer me mostrar? O que eu posso aprender com as histórias que presencio diariamente?
Reflito sobre minha atuação e sobre o papel limitado que uma quimioterapia tem diante da complexidade de sentimentos e de demandas de uma vida humana. Quimioterapia não traz sonhos, traz sintomas físicos bastante dolorosos. O que traz os sonhos pras pessoas?
Pelo que você levanta todas as manhãs, já pensou nisso? Eu não sei responder exatamente a essa pergunta nesse momento.
Voltando para casa hoje, após meu dia de trabalho, sentia o peso da vida nas minhas costas. Até minha voz estava pesada. Resolvi deixar rolar minha playlist de músicas aleatoriamente e sou brindada com um momento especial, começando com “Amor Cinza”, de Mateus Aleluia, e terminado com “Bola de meia, bola de gude”, do Milton Nascimento.
Mateus Aleluia me encheu de paz quando cantou com sua estrondosa voz “vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas”. Penso nisso, penso nas minhas transformações de vida, dos recomeços. Acho que respiro melhor, acho até que os ombros ficaram mais erguidos. Milton, com sua voz de veludo, me relembra que há uma menina orando sempre no meu coração, toda vez que eu balanço ela vem me dar a mão. Pensei no território sagrado da minha criança que ainda vive dentro de mim. Ela era tão leve, gostava de correr, gosta de viver intensamente e era corajosa.
Chego em casa de mãos dadas com a Juju, como minha mãe me apelidou quando soube que estava grávida de uma menina.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista