Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Luzia Fátima Baierl*

A Operação Escudo/Verão na Baixada Santista dá luz ao dramático processo de violações de direitos humanos e de ilegalismos presentes na nossa sociedade: ceifou a vida de 28 pessoas em sua primeira fase e 56 na sua segunda fase, totalizando 84 mortes violentas, amplamente divulgadas nos diferentes meios de comunicação. Polarizando opiniões, revela a face perversa da vida nas cidades, daqueles/as que merecem viver ou ser mortos.

Os relatos das situações, ilegalidades e violações de direitos humanos ocorridas em operação policial do governo paulista, divulgadas no II Relatório de Monitoramento de Violação de Direitos Humanos na Baixada Santista, revelam de forma cabal as atrocidades e ilegalismos nas ações dos agentes da operação, entre elas: execuções sumárias, alteração de cenas do crime, ausência de socorro, intimidação de testemunhas,  fraude processual, obstrução de câmeras corporais, omissões de informações nos boletins de ocorrência, violação do direito ao luto e ao acesso a informações às famílias das vítimas, impedindo, por exemplo, acesso aos boletins de ocorrência, laudos necroscópicos e de realizarem o reconhecimento do corpo de seu ente de forma presencial no IML, entre outras. Dos 12 assassinatos apresentados no relatório, 11 são homens negros, sendo um com deficiência. Os casos apresentados no relatório e outros divulgados pelos meios de comunicação indicam as versões distintas dos fatos relatados pelos moradores, familiares e aquelas contidas nos boletins de ocorrência, evidenciando uma série de ilegalismos e violação de direitos.

A morte de Edneia Fernandes Silva, 31 anos, mãe de seis filhos baleada na cabeça em Santos, é exemplar para identificar as várias versões de um assassinato.  Segundo a “Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP), dois homens em uma moto desobedeceram à ordem de parada e dispararam contra policiais militares, que revidaram. Segundo testemunhas que contestam a versão da PM, não houve confronto. Policiais atiraram em local público durante uma perseguição, sem preocupar-se com as pessoas que estavam nas ruas. No momento da ação muitas pessoas correram. Edneia, infelizmente, foi baleada e levada pela população à unidade de pronto atendimento e mais tarde foi transferida para a Santa Casa da cidade. Mas não resistiu aos ferimentos” (Frequência Caiçara, 29.03.2024).

As narrativas de moradores e familiares e policiais indicam versões diferentes dos fatos: para policiais, alegações de legítima defesa, frente a “ataques de bandidos”, desobediência à ordem policial; para familiares e moradores não ocorreram confrontos, só policiais atirando em local público. É nítido que, nos territórios onde as operações policiais foram deflagradas, as mesmas geraram situações de pânico, medo, insegurança e impotência, vivenciadas pela população pela ação truculenta e perversa da Polícia Militar, objeto de escuta e análise e narradas ao longo do relatório de monitoramento.

Embora finalizada em 1 de abril a Operação Escudo/Verão, a ação policial vem sendo abordada muito mais nas consequências do que nas causas, como se a violência urbana e a criminalidade pudessem ser resolvidas pontualmente, através da intervenção policial e do encarceramento dos envolvidos. Os noticiários alardeiam o quanto foram encarcerados, o quanto de drogas e armas foram apreendidas e quantos mortos tiveram passagem na polícia. Ao invés de aprofundar a complexidade do fenômeno, criam um inimigo, delimitam num determinado espaço socioterritorial, buscam leis e ações policiais truculentas para depois tentar destruí-lo. Tal perspectiva considera que a violência urbana é responsabilidade direta e exclusiva dos bandidos e traficantes, sem considerar a rede de articulação do crime organizado com a lógica do sistema capitalista envolvendo, portanto, uma logística para sua manutenção que necessita de apoio de autoridades políticas, policiais, bancos, mercado imobiliário e do próprio mercado consumidor.  Ou seja, necessita daqueles entendidos como “cidadãos comuns” e “honestos”.

A Baixada Santista, região conhecida tanto por suas belezas naturais, quanto por localizar em seu território o maior complexo portuário da América Latina, é palco de profundas desigualdades sociais e conflitos urbanos, que servem como um microcosmo das tensões entre ilegalismo, legalismo, e as complexidades de garantir o direito à vida e a cidade para todos seus habitantes. Este território, entendido como espaço vivido e construído de forma desigual, é o locus privilegiado onde as violações de direitos sociais e humanos são tecidas cotidianamente, em particular, a violência policial e a violência contra a vida. As desigualdades sociais se expressam na própria forma de configuração dos territórios. E são exatamente nos territórios onde os serviços públicos de saneamento básico, saúde, educação, lazer e assistência social mal chegam e quando chegam são de forma precária que ocorrem a maioria das violências e violações dos direitos humanos.

Embora sem dados oficiais explícitos, até o momento, há indícios de que a violência ocorrida na Baixada Santista pela Operação Escudo/Verão teve como alvos prioritários as pessoas negras.  Não dá para negar que o processo de formação socio-histórica brasileira traz enraizado até hoje a herança do racismo estrutural. Basta olharmos os dados das mortes violentas ocorridas no Brasil em 2021 que atingiu 77,1% da população negra (pretos e pardos) (Ipea: 2023). O Atlas da Violência aponta que, embora venha ocorrendo queda nas taxas de homicídios no Brasil, estas se concentram entre os não negros. Os dados evidenciam “que há um grupo racialmente identificado sendo vitimizado de forma sistemática” (Ipea: 2023).

Nada de novo no processo de construção socio-histórico espacial das cidades na Baixada Santista que evidencia a linha tênue tecida entre o legal e o ilegal, que oculta processos de criminalização da pobreza, discriminação racial, desigualdades sociais e segregação socioespacial, presentes na região. Não se trata, portanto, somente de uma questão da Segurança Pública. Ela se materializa e responde aos interesses em jogo em cada conjuntura, oscilando entre formas repressivas e perversas até as formas de maior tolerância. Assim, a tessitura do legal e ilegal deve ser situada por onde as forças sociais e políticas se entrelaçam no cenário urbano pela disputa dos espaços de poder por onde as legalidades e ilegalidades são instituídas.

Como se trata de linhas tênues do tecido urbano, é necessário fortalecer os coletivos, movimentos e organizações da sociedade civil que se articulam em formas de resistência e enfrentamento das violações dos direitos, clamando por justiça social e pela elucidação dos crimes que, sistematicamente, vêm tirando a vida da população negra. Essa é uma pauta política fundamental para a agenda de nossos/as candidatos/as no próximo pleito eleitoral.

*Luzia Fátima Baierl é professora doutora do curso de Serviço Social da Unifesp e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Baixada Santista, que desenvolve o projeto Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.